quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Ingênua


Eduardo insistia em dizer que “antes de cobrarem dele uma conduta ética, moral, que a filosofia tratasse de resolver o que era cada uma delas”. Em suas aulas de Economia Política nas salas da Universidade, a figura de professor o permitia o privilégio de incitar todo tipo de debate para então deixar que os argumentos se confrontassem enquanto ele apenas observava sem manifestação. “O debate quase nunca se faz entre idéias, mas entre pessoas e orgulhos, que as vezes até se preocupam com as idéias”, se defendia ao conversar com Alfredo, professor de Ciência Política e fervoroso membro do Partido Comunista. Nos idos da conversa de bar dizia que a única ética que o contemplava era a contida no código da profissão. “E olhe lá!” afirmava. Duas horas de conversa se passaram para que Alfredo iniciasse sua confidência:
- Edu, tem uma aluna... Cara, 18 anos de docência e uma conduta sem desvios. Mas ela eu não sei te dizer o que tem, ela é única, meu camarada. Essa menina está me fazendo sentir vivo de novo.
Alfredo insistia que ele continuava a ser ético, ou seja lá o que fosse, apesar do romance. Com os olhos marejados, perdidos em algum lugar acima dos ombros de Eduardo, comentava a silhueta jovial, cabelos cacheados até aquelas nádegas redondas e imponentes, olhos cheios de vivacidade, seios soltos por de trás daqueles vestidos, afirmando ainda mais sua liberdade subjetiva. “Ela é dotada de uma ingenuidade que me excita, me tira do prumo completamente, meu caro”.
- Até a ingenuidade pode ter seu traço intencional, amigo – sorriu Eduardo com o canto da boca antes de continuar – a mulher que sabe o poder que a ingenuidade exerce sobre os homens, será ingênua sempre que puder.
No instante que Eduardo tentava arrancar do amigo, diante daquele “desvio de conduta”, alguma tranqüilidade ou sorriso com tais filosofias baratas, Alfredo, ao contrário, empalideceu instantaneamente e fixou os olhos inexpressivos na porta do bar. Parecia estar vendo o próprio Che Guevara entrando. Mas via, na verdade, a sua aluna, jovial, travessa, trazendo uma segurança no andar e algo de instigante no sorriso. Trajava um jeans que abraçava suas pernas até morrerem em suas sandálias de couro trançado até os tornozelos, a blusa era algo indiano ou afim, que deixava um dos ombros a mostra, no cabelo um rabo de cavalo que deixava boa parte solta nas costas. Eduardo até compreendeu melhor seu amigo, era realmente uma jovem muito atraente, mas caminhava na direção dos dois com seu braço rodeando a cintura de um rapaz também sorridente e vivaz, beijando-a o pescoço de tempos em tempos sem parar de andar. Daí a perplexidade de Alfredo. Parou diante da mesa e com um “olá professores, é bom saber que vocês são seres humanos também.” - um sorriso que não deixava claro ser de prazer ou ironia, tão sensual que até Eduardo a desejou em silêncio – se abaixou e ao beijar o rosto agora corado de Alfredo e continuou: “um beijo no meu melhor professor”, e se atirou novamente nos braços do rapaz – um merdinha, segundo Alfredo – que sorriu para os professores acenando com a cabeça e deu as costas, levando consigo a aluna e sua ingenuidade.
- É meu camarada, a ingenuidade nas mãos erradas pode causar um estrago.
Pobres homens, sempre mais ingênuos do que imaginam.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Palavras


Ideias na Cabeça
Autor desconhecido


Começa o jogo e elas são reféns

Prisioneiras no cárcere de nós

Tentando construir a fuga pela voz

Ou na timidez de qualquer gesto

Enfrentando todo tipo de protesto

Se fazem livres entre sinais e sons

Você inerte enquanto elas dão o tom

O jogo inverte, pois, seus papéis

E ao dizê-las você descobre o refém que és

Norhan Sumar

domingo, 2 de setembro de 2012

Largada


                      
São seis da manhã e o celular já toca as notas que sempre chegam para tira-lo do sono. Ele, Israel, odeia o celular, talvez seja só porque interrompe as únicas horas em que ele pode ter o que quer. Levanta-se e já não vê mais sua mãe, ela costuma sair meia hora antes para o trabalho do outro lado da cidade. Seu pai, ele nunca viu. Acorda com um beijo carinhoso sua irmã de apenas quatro anos, oito a menos que ele. A menina permanece na cama da mãe todos os dias, ela dorme lá, não fosse assim, seria na cama dele. Não há um café da manhã, apenas a mesa, todos os dias posta por insistência da mãe. Aliás, há café, só café. A irmã, por sorte tem a creche que se inicia às sete, meia hora antes da escola dele, ambos comerão por lá. Também por sorte, ou por direito.
Bem perto dali, no “asfalto”, apenas algumas centenas de degraus abaixo, o celular por sorte só toca quarenta minutos depois. Ele, Gustavo, também odeia o celular, talvez só por ser adolescente mesmo. Acorda quase sempre com a voz da mãe, à mesa na companhia de seu irmão mais velho. Beijos e “bom dia” para o início do desjejum. Seu pai, de vez em quando liga para não perder o costume. Sua mãe é quem o leva para a escola depois do café, enquanto seu irmão ruma para a faculdade. O quinto ano de Engenharia parecia ter levado de seu irmão aquela leveza de alguns anos atrás.
Israel deixa sua irmã no caminho, sempre aos cuidados da tia Benedita da creche, simpática e firme, se é que seja possível. Também no caminho, quase sempre encontra alguns amigos de sua infância, sem uniforme escolar, hora portando rádios comunicadores e armas, hora portando a companhia do pai e roupas sujas de cimento. Questiona-se sobre qual das possibilidades está mais próxima dele já que não tem pai. A insistência da mãe é o que mantém na escola. Por ele trabalharia, para ajudar a mãe, e também porque gosta muito de biscoito. Talvez pudesse comprar alguns.
Gustavo segue no carro de sua mãe. A escola não é muito longe, mas como mora ao pé do morro, ela prefere não correr o risco de deixar que percorra o caminho sozinho. Também passa por alguns de seus amigos de infância, na companhia dos pais, empregadas ou até sozinhos, mas todos com seus uniformes escolares. Gustavo também não estudaria se fosse por ela. Se para ser advogado tivesse que enfrentar salas de aula por 60 horas semanais durante os próximos 10 anos, ele desistiria bem antes não fosse a pressão da mãe. Queria ser marinheiro e ir pra onde lhe desse na telha. Talvez como advogado pudesse fazer isso.
Nas salas de aula, as angustias eram quase sempre as mesmas, não fossem as lacunas deixadas pela falta de professores na escola de Israel. No mais, anseio pela hora do recreio, provas, colas, educação física, aulas infinitas de matemática. Aquela coisa que certa vez a professora de português de Israel falou sobre agregar valores, ele não sabe bem se acontecia de fato. E se acontecia, era tão sutil que ele nem percebia.
Na volta, por vezes sem esperança alguma, em outras com uma fagulha acesa, Israel pensava, ao subir seus degraus da vida olhando para baixo, na falta de sorte que tinha. Que tipo de sorte(io) divino o colocara a apenas algumas centenas de degraus da facilidade, da felicidade, da esperança, da fartura, do poder, dos biscoitos, do asfalto?
Gustavo não questionava muito. Nutria apenas a curiosidade de saber como era tudo logo ali em cima. Como eram as brincadeiras, as casas, as mães. Perguntara a sua mãe certa vez, que apenas disse que era cheio de pessoas armadas vendendo drogas e matando gente, assim como noticiam os jornais. Gustavo também subia seus degraus de vida, mas eram apenas alguns até o segundo andar.
De degrau em degrau, caminhavam os dois para algum lugar desconhecido. Seja para o segundo andar após alguns degraus, seja para bem mais alto após centenas deles. O lugar até poderia ser o mesmo no final da caminhada, mas certamente demoraria mais a chegar quem tem mais a subir. As semelhanças que os uniam, garantidas pelos direitos ou pela sorte, mascaravam as diferenças. E aí está a questão que ninguém pergunta em nenhuma das escolas: não seriam as diferenças os melhores alimentos da revolta? Pois essa costuma se alimentar do que lhe cruza o caminho, inclusive biscoitos.


Norhan Sumar