quarta-feira, 30 de março de 2011

Felicidade relativa

 
 “você não vai ter coragem de ir até lá, vai?” Perguntou o amigo cauteloso, tão assustado quanto os outros dois.
 “Claro que vou, Pedro. Deixa de ser medroso, é só um mendigo.” A coragem lhe aflorava a face. E ele caminhou em direção ao maltrapilho que falava alto, coisas que pareciam não fazer o menor sentido para os quatro meninos.
“Arthur, toma cuidado com o cachorro dele.” - Alertou o menor dos amigos - “não chega muito perto.”
“Confia, Paulo. Olha bem pro Aldo, parece até querer vir comigo.” - arriscou estendendo a mão em direção ao amigo - que fingiu não ter ouvido, aproveitando para esconder as mãos no bolso.
E assim foi o mais corajoso dos meninos. A felicidade lhe saltava os olhos. Parecia não temer nem um pouco aquele homem de barba longa e branca, cabelos sujos e mal cuidados, com roupas rasgadas e de hábitos muito duvidosos. O homem vivia naquela praça a repetir frases que os meninos pouco entendiam: “Eu que sempre contestei pouco, conservei minhas virtudes desde a vivacidade juvenil, e hoje vivo feliz à minha maneira, sem me render aos hábitos desse mundo hostil. Você que sempre contestou muito, foi um jovem de ideal, hoje se rendeu, e na sua própria mediocridade banal é mais infeliz que eu...” Ouvindo as palavras do velho homem, Pedro se aproximou diminuindo a velocidade dos passos quanto mais perto chegava. Pra sua surpresa, o homem levou a mão ao bolso e tirou de lá um embrulho laminado que começou a abrir com cuidado.
“Não esqueça de levar um pouco pros seus amigos.” – Falou o velho homem, oferecendo ao menino o papel laminado com alguns pedaços de chocolate dentro.
Arthur não recusou às boas vindas, mas antes que pudesse fazer as dúzias de perguntas que tanto queria fazer o homem continuou: “Agora pode ir. Não quero que pensem que estou fazendo mal a uma criança. Mas obrigado por vir aqui. Você tem muita coragem. Não é qualquer um que chega perto de um velho louco como eu.”
“Obrigado!” Foi tudo que o menino conseguiu dizer antes de se virar e começar a correr o mais rápido que podia em direção aos amigos.
 Aldo, Pedro e Paulo não quiseram comer os chocolates dizendo que deveriam estar podres ou envenenados. Arthur os comeu só. Assim como pulou só da ponte até o rio certa vez. Entrou tantas vezes na propriedade de Seu Inácio para afanar algumas frutas, tendo Paulo o acompanhado apenas uma vez. E fez tantas outras coisas que com o passar dos anos fizeram de Arthur um homem cheio de histórias pra contar e experiências na memória.
Naturalmente, os três amigos de Arthur casaram, tiveram filhos e continuam a se reunir para lembrar as aventuras que somente Arthur vivera. Todos na cidade conheceram o menino dos sorrisos e do bom coração; das aventuras tantas que algumas passaram a ter moldes de lendas contadas pelas avós a seus pequenos netos. Já Arthur, talvez seja mesmo protagonista de mais uma história cujo final ninguém nunca saberá contar. Na cidade ele não é visto há alguns anos. Sabe-se apenas que um dos netos de Paulo, ao visitar sua tia no estado vizinho, contou ter recebido um papel laminado cheio de chocolates de um velho maltrapilho que falava “um monte de coisa estranha” e mandou um forte abraço para os três amigos mais corajosos que ele conhecera.
Norhan Sumar

sábado, 26 de março de 2011

Embarcação

Desagua amar
desarma o frio
em outro leito
em qualquer rio
De águas quentes
de correntezas
Meus afluentes
de incertezas
Desanda o barco
Esquece o cais
pra sempre volta
ou nunca mais
Deriva a nau
Enfrenta os ventos
apronta as velas
Aponta o norte
que a sorte aponta
Quem sabe a morte
não seja o tempo
que num momento
transforme o forte
em sofrimento

Norhan Sumar

quinta-feira, 24 de março de 2011

Queria

Eu não queria explicação
Queria o tempo pra mim
Pra controlar nossos momentos
Até que acabe tanto alento

         Eu tento o justo imposto

Eu não queria sua canção
Queria o tempo pra mim
Pra ser tamanho egoísta
De te roubar aquela lista

          Que se assemelha nosso gosto

Eu não queria a saudade
Queria o tempo pra mim
Pra brincar de te rever
E esquecer de te esquecer

          Que acontece a contragosto

Eu queria o bem me quer
E queria todo o tempo
Pra não ter que me esconder
De amar ou de sofrer

           E me encontrar só em teu rosto

sexta-feira, 11 de março de 2011

Afinal, o que é a saudade?

É chegada a hora. Depois de algum tempo remoendo, relutando, evitando e inventando desculpas para ignora-la – é chegada a hora de reconhecer sua presença infame. Notei que, silenciosa, ela sempre chega de surpresa. Mesmo que sua chegada já seja anunciada, fatídica, inevitável. Nunca me amedrontou sua força e suas façanhas; nunca hesitei em enfrentá-la, achando ser o mais forte e desgarrado dos homens.
Doce ilusão!
Ninguém é páreo para a saudade. Seja boa ou ruim, ela sempre coloca na frente dos seus olhos a imagem das pessoas que você mais queria que estivessem ali materializadas; os momentos que você queria que fossem revividos; as pessoas que você queria que fossem imortalizadas; as histórias que você queria recontar. É uma constante a companhia das lágrimas, senão talvez nem pareça saudade. Ou mesmo aquele sorriso vazio, meio abobalhado de quem não sabe o que dizer ou fazer diante da presença cortante dessa companheira da distância.
E não pense que ela apenas conduza a tresvario somente os que vivem distantes daqueles que querem bem.  Ela sabe usar da aproximação breve - estar perto de quem gostamos por momentos poucos e tempo insuficiente é o seu prato cheio. 
Pois é, quando a despedida acaba seu espetáculo de lágrimas e receios, a saudade espera para chegar. Parece querer te enganar fazendo você achar que vai sobreviver à distância sem a sua presença. Mas ela vem. Querendo ou não, ela vem.
Ela já está em você, já nasce com você. E ainda sim, você pode morrer sem aprender a lidar com ela. Ela renova suas armas, seleciona suas maiores fraquezas e seus maiores temores para usar no jogo. Se você enfrentar, pode ser doloroso. Mas evitar pode fazer d’ela mais forte.
Afinal, o que é a saudade? Confesso que não sei definir. Mas sei reconhecer a força da única que me faz pensar em desistir.
Norhan Sumar

terça-feira, 1 de março de 2011

Quem é ela?

Ela gostava de enfeitiçar, mas talvez não soubesse. Ou apenas não fizesse por mal. Mas sua beleza era algo inexplicável: parecia ter sido pintada numa tela pelo melhor dos artistas e insistia em ganhar vida com traços perfeitos - entre seu sorriso e seus gestos delicados e precisos estavam escondidos os mais poderosos artifícios para fazer alguém se apaixonar.

Ao que me parece, lendo os anais dessa famigerada estória, o encanto estava em sua presença. E não se podia atribuir tal façanha a uma beleza de corpo físico. Ela encantava em gestos e trejeitos. Comentava-se que até mesmo a Marcela – de “Dom Quixote de La Mancha” – a mesma que enfeitiçou Crisóstomo e tantos outros pastores se sentiria envergonhada e de pouca beleza diante daquelas bochechas coradas por um sorriso de olhar brilhante.

“Nem pense nisso!” diziam os mais entendidos ao saber das intenções ou interesses de algum desavisado. “Com essa aí até o Don Juan sairia derrotado” – era o que se comentava quando seu perfume anunciava sua chegada.

Certa noite, quando a arrebatadora da paz (carinhosamente chamada por um de seus amantes) chegou naquele bar, vestindo apenas um jeans e uma camiseta – o suficiente para destronar a Kate Middleton – foi que se iniciou o mais interessante dos duelos:

Um duelo de amor pode não ter armas, mas deixam cicatrizes mais dolorosas que as marcas de uma guerra.

“Quem é essa?” – perguntou o mais novo desavisado. Ficou nítido o espanto de seus amigos diante da pergunta.

“Você não gostaria de saber, garanhão!” – Antes que ele pudesse concluir sua resposta o desavisado levantou-se e caminhou de vagar até a moça. Foi uma cena curiosa, pois quando ela se virou deixou faltar algo: o sorriso.

Ela não sorriu como o de costume. Parecia estar guardando a sua mais valiosa arma para o final daquele embate. “Deve ser por isso que todo mundo tem medo de você aqui. Séria assim você pode acabar afastando alguém interessante.” – Atreveu-se o forasteiro.

Foi então que ela escolheu as armas da batalha – sorriu graciosamente – “E se for essa a intenção?” – respondeu sem se alongar. Mas não foi preciso mais do que seis palavras para fazer ecoar aquela voz que parecia controlar os sentidos do interlocutor.

“Então deu certo. Porque eu confesso que não sou muito interessante.” – Argumentou.

Os dois sorriram e conversaram durante horas a fio, como se não houvesse mais ninguém ao seu redor.

Mal terminou a conversa, prometendo continuá-la em outro momento, o atrevido foi recebido pela intervenção do amigo: “Cara, essa carrasca gosta de arruinar a vida de homens de bem.”

“Isso já me isenta desse mal. Porque eu bem sei que faz algum tempo que o bem e eu andamos afastados.”

“Tudo bem, durão. Quando você precisar chorar por causa d’ela, eu pago o drink.” - Retrucou o amigo.

“Ótimo. Achei que você nunca fosse oferecer.” - Sorriu ao responder e ver que seu companheiro não conseguia esconder sua reprovação.

Muitos foram os drinks pagos pelo amigo adivinhão. Nem tantos foram os choros, mas o sofrimento lhe parecia conveniente. Ela era uma adversária primorosa; conhecia excelentemente ou instintivamente bem os caminhos que trilham a paixão e o amor. E parecia evitá-los como um toureiro evita os chifres do touro – com bem mais charme e graciosidade. O forasteiro, por sua vez, achou um motivo para lutar, para viver. E, ao contrário do que muitos dizem, acho que ele vivia bem por morrer de amor.

Norhan Sumar