quinta-feira, 2 de julho de 2020

Fosse posse

Poderia haver pertencimento sem posse 
Fosse a presença algo além do seu corpo
Que superasse a aparência de tudo
E fosse mais fundo
Onde o padrão não alcança
Onde a canção e a dança fossem um 
E desvelassem a essência por dentro
a realidade, na verdade é meu mundo 

Deveria viver enquanto você não viesse
Tivesse a emoção lugar menos torto 
Que encontrasse em meu peito um escudo 
E fosse mais fundo 
Onde o padrão não alcança
Onde a emoção que se lança em mim
Respondesse a questão que me fez
À vontade, pra ficar ou partir do meu mundo

Caberia aqui por mais quanto tempo? 
Ficasse na norma daquela vida morna 
Que sabemos, era linda eu assumo 
E fosse mais fundo
Onde o padrão não alcança
Onde a paixão, semelhança de ser em si
Desatasse em nós os nós da vez 
Liberdade, para partir e permanecer juntos

Norhan Sumar

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Da janela

É tempo de olhar pela janela 
a vida que passa 
a morte também 
os vizinhos e seus cachorros 
seus carros e seus nenens
seus descasos sem acasos
a hora marcada de seus améns

É tempo de olhar pela janela 
da alma de nós 
dos outros também
de egoísmos e solidão
dos iPhones e seus reféns 
dessa ausência de diálogo
dessa terra de ninguém

É tempo de abrir as janelas
olhar direito para o mundo
dos sujeitos deitados na rua
dos direitos alijados 
de cada fração encontrar a sua
para desfazer o estrago 
de gente comer e gente que nunca

Não basta mais abrir a janela
Há de pisar no chão
melhor que seja descalço
sente que é frio como coração 
do patrão companheiro falso 
que passeia com a mão invisível
e calcula o preço do seu estrago 

É tempo de esquecer as janelas
e derrubar paredes, se preciso
ignorar as fronteiras
e os limites seletivos de sempre
que nos repelem para a beira
situam à margem como castas 
e nos concedem a xepa da feira

É tempo de olhar as nossas janelas
Agora de fora para dentro
Sair da gente
Para que o outro esteja 
Aproveitar a tragédia como ensejo 
Para então encurtar distâncias
Multiplicar (saciar) desejos

Norhan Sumar
Respira! Eu dizia a ele 
Puxa devagar o ar 
Enquanto ele insistia que o ar não vinha
e não vinha também o insumo
o teste, a notícia.
Nada
Nós estamos aqui! 
Eu repetia incansável
Enquanto ele respondia com os olhos
Marejados e vagos 
assim como os nossos, sem óculos [em falta]
sem poder fazer nada 

Jovem. 
Nada de grupo de risco 
Arrisco dizer que estava isolado
mas o patrão mandou trabalhar 
Não teve fuga e nem quarentena
Sem live e sem romance
Sem #fiqueemcasa 
Nunca foi gripezinha 
E ele sabia [sentia]
mas o patrão vestiu verde e amarelo
Foi para a rua pela economia
pelo discurso do ódio
Não paga salário para quem não trabalha
[respira fundo, eu dizia]

Por aqui, a equipe se entreolha
O campo de batalha é caótico
Tem medo e dúvida entre nós
e mais falta de ar
falta de leito
falta da família que isolamos 
falta da minha filha
que não se interessa tanto por videochamadas
Talvez seja normal para quem tem três anos
o que acentua a saudade
Será que ela entende a minha ausência?
Me pergunto todos dias ao tirar a máscara

Falta fôlego para todos 
Me sinto insensível ao dizer isso
Mas também me falta ar 
enquanto sobra vontade 
sobra solidariedade de classe 
Trabalhador cuidando de trabalhador
mas sem ar é preciso mais que isso
e se eu adoeço sem carteira assinada
trabalhador da saúde precarizado
contratado sem vínculo 
pacientes instáveis, nós também
nunca estive tão a flor da pele 
Nunca me doeu tanto a morte do meu povo 


Morreu mais um no plantão 
E daí? 
Eu não sou coveiro 
diriam os canalhas
estimulando aglomeração
alimentando a bandalha 
@s colegas seguram as lágrimas 
e as pontas em casa
E as contas em casa? 
Não há “em análise“
O banco que lucra é assintomático 
A indústria de insumo gargalha
higieniza o leito e abre essa vaga

Segue a rotina na ala 
Fecha a cortina do leito
Mais uma parada
E eu sem capote vou mesmo assim
Uma vida importa
Todas elas
As 9.000
Deixei um pouco de mim ali
Em vão? 
Talvez não para quem tem fé
Eu, pagão, choro mais uma perda
Caminho sem direção


Norhan Sumar

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Entre nós

Entre tantos quereres
eu não quero mais
ou talvez não por ora 
te sentir tão longe
te saber tão linda
te lembrar entregue
sem poder tocar 
e provar ainda o nosso melhor
do suor, do sabor do seu mar
das trilhas, corpo nu
do céu, da sua boca 

Entre tantos quereres
também, quisera 
E como não? 
E como, então!
Consome minha intensidade
me ensina teus caminhos
pro prazer ou pra ficar 
pra calar, pro silêncio
de lá, me aponta teu desejo
com a ponta dos seus dedos
mapeando os lábios

Entre tantos deveres
uma subversão
Só uma? 
mais uma cerveja
a saideira, talvez
o nosso olhar, como afago
afogo meu corpo molhado
te aponto minha correnteza
e vc navega, com calma
Só alma? 
Faz como quem ama

Entre tantos poderes 
quem perde é quem não faz
não há tanto faz pra gente
e aqui se faz, até ficar tonto
sem fôlego, sem paga
tirando o pudor pra dançar
observando quem passa
sem notar que a graça
não é o lugar
ou a tensão envolvida
mas o encontro de nós

Entre tantos saberes
Revelo tudo o que não sei
nem de ontem
tampouco de amanhã
e por pouco o assunto não surge
e pra que surgir? 
se sorrir tá tão natural aqui
aliás, que sorriso
alimenta a vontade da gente
faz despedir pensando
em despir nossas almas de novo