Respira! Eu dizia a ele
Puxa devagar o ar
Enquanto ele insistia que o ar não vinha
e não vinha também o insumo
o teste, a notícia.
Nada
Nós estamos aqui!
Eu repetia incansável
Enquanto ele respondia com os olhos
Marejados e vagos
assim como os nossos, sem óculos [em falta]
sem poder fazer nada
Jovem.
Nada de grupo de risco
Arrisco dizer que estava isolado
mas o patrão mandou trabalhar
Não teve fuga e nem quarentena
Sem live e sem romance
Sem #fiqueemcasa
Nunca foi gripezinha
E ele sabia [sentia]
mas o patrão vestiu verde e amarelo
Foi para a rua pela economia
pelo discurso do ódio
Não paga salário para quem não trabalha
[respira fundo, eu dizia]
Por aqui, a equipe se entreolha
O campo de batalha é caótico
Tem medo e dúvida entre nós
e mais falta de ar
falta de leito
falta da família que isolamos
falta da minha filha
que não se interessa tanto por videochamadas
Talvez seja normal para quem tem três anos
o que acentua a saudade
Será que ela entende a minha ausência?
Me pergunto todos dias ao tirar a máscara
Falta fôlego para todos
Me sinto insensível ao dizer isso
Mas também me falta ar
enquanto sobra vontade
sobra solidariedade de classe
Trabalhador cuidando de trabalhador
mas sem ar é preciso mais que isso
e se eu adoeço sem carteira assinada
trabalhador da saúde precarizado
contratado sem vínculo
pacientes instáveis, nós também
nunca estive tão a flor da pele
Nunca me doeu tanto a morte do meu povo
Morreu mais um no plantão
E daí?
Eu não sou coveiro
diriam os canalhas
estimulando aglomeração
alimentando a bandalha
@s colegas seguram as lágrimas
e as pontas em casa
E as contas em casa?
Não há “em análise“
O banco que lucra é assintomático
A indústria de insumo gargalha
higieniza o leito e abre essa vaga
Segue a rotina na ala
Fecha a cortina do leito
Mais uma parada
E eu sem capote vou mesmo assim
Uma vida importa
Todas elas
As 9.000
Deixei um pouco de mim ali
Em vão?
Talvez não para quem tem fé
Eu, pagão, choro mais uma perda
Caminho sem direção
Norhan Sumar