“Como pode
alguém usar crack, Nelson?” perguntava Daniele, nutricionista de um centro de
saúde em Cachoeira, uma cidade pequena no interior.
“Não sei,
Dani. Como médico não consigo explicar o que leva uma pessoa a embarcar nessa,
mesmo com tanta informação, com a mídia, com os profissionais dizendo como as
pessoas precisam viver para serem saudáveis.” Respondeu o médico enquanto
conversavam no pátio externo da unidade e Nelson aproveitava para acender mais
um cigarro.
Os trabalhos
estavam calmos naquele dia, como era o habitual na pequena cidade de Cachoeira.
Mas como se costuma dizer, os bandidos saem da Capital em busca de refúgios nas
pudicas e pacatas cidades de interior para fugir da repressão policial ou coisa
que o valha. As cidades pequenas, construídas nos entornos das paróquias, se
livram de seus pecados todo domingo de manhã, durante as missas rezadas pelos
padres estrangeiros que santificam qualquer pecador após meia dúzia de Aves
Marias. E Cachoeira começava a padecer desse “mal.”
“Dani”.
Recomeçou o médico. “Será que o sedativo do viciado da sala de repouso ainda
está fazendo efeito?” tragou mais uma vez seu cigarro de filtros amarelos que lhe
custavam dedos manchados pelo hábito longínquo. “Daqui a pouco ele começa a dar
escândalo novamente.” Terminou, acendendo o cigarro da amiga com a brasa de seu
próprio.
Eles estavam
apenas aguardando a chegada da ambulância para transferência do Aldo. Mais um
dependente químico que precisou utilizar o sistema e o sistema não o
desamparou. Seus profissionais preparados, formados para serem críticos,
reflexivos, humanizados, cientes das diferenças sociais impregnadas no país,
cuja abordagem dialógica dá voz ao usuário no processo saúde-doença, trataram
de atender a demanda daquele homem que precisava apenas de uma internação a fim
de “limpar” seu organismo do tóxico e recondicionar seus hábitos. Simples como
tudo parece ser.
A epidemia não fez e não faz distinção,
chegou até a pequena Cachoeira. As internações eram encaminhadas para cidade
vizinha, um pouco maior, com um hospital de pequeno porte e seus trinta leitos.
Mas os investimentos eram tão escassos –
por vezes em estratégia de compulsoriedade nas internações - como em
qualquer capital. A realidade de Cachoeira parecia caótica, com usuários de
drogas ilícitas pelas ruas sendo criminalizados pelo consumo, transgressores
das normas e leis que conduzem o Estado. Tinham ainda alguns dos moradores de
rua antigos por ali, incluídos no grupo de “viciados”, pertencendo a ele ou
não. E a epidemia era iminente. A
epidemia que sofrem as capitais. A doença da desumanização dos tratamentos, das
prescrições comportamentais estáticas, do desrespeito ao próximo, da indiferença
diante das injustiças e contradições da sociedade. Ah, e o crack? Mas o crack
não é a epidemia. A nossa doença é outra!
Norhan