terça-feira, 29 de maio de 2012

Epidemia


“Como pode alguém usar crack, Nelson?” perguntava Daniele, nutricionista de um centro de saúde em Cachoeira, uma cidade pequena no interior.
“Não sei, Dani. Como médico não consigo explicar o que leva uma pessoa a embarcar nessa, mesmo com tanta informação, com a mídia, com os profissionais dizendo como as pessoas precisam viver para serem saudáveis.” Respondeu o médico enquanto conversavam no pátio externo da unidade e Nelson aproveitava para acender mais um cigarro.
Os trabalhos estavam calmos naquele dia, como era o habitual na pequena cidade de Cachoeira. Mas como se costuma dizer, os bandidos saem da Capital em busca de refúgios nas pudicas e pacatas cidades de interior para fugir da repressão policial ou coisa que o valha. As cidades pequenas, construídas nos entornos das paróquias, se livram de seus pecados todo domingo de manhã, durante as missas rezadas pelos padres estrangeiros que santificam qualquer pecador após meia dúzia de Aves Marias. E Cachoeira começava a padecer desse “mal.”
“Dani”. Recomeçou o médico. “Será que o sedativo do viciado da sala de repouso ainda está fazendo efeito?” tragou mais uma vez seu cigarro de filtros amarelos que lhe custavam dedos manchados pelo hábito longínquo. “Daqui a pouco ele começa a dar escândalo novamente.” Terminou, acendendo o cigarro da amiga com a brasa de seu próprio.
Eles estavam apenas aguardando a chegada da ambulância para transferência do Aldo. Mais um dependente químico que precisou utilizar o sistema e o sistema não o desamparou. Seus profissionais preparados, formados para serem críticos, reflexivos, humanizados, cientes das diferenças sociais impregnadas no país, cuja abordagem dialógica dá voz ao usuário no processo saúde-doença, trataram de atender a demanda daquele homem que precisava apenas de uma internação a fim de “limpar” seu organismo do tóxico e recondicionar seus hábitos. Simples como tudo parece ser.
A epidemia não fez e não faz distinção, chegou até a pequena Cachoeira. As internações eram encaminhadas para cidade vizinha, um pouco maior, com um hospital de pequeno porte e seus trinta leitos. Mas os investimentos eram tão escassos –  por vezes em estratégia de compulsoriedade nas internações - como em qualquer capital. A realidade de Cachoeira parecia caótica, com usuários de drogas ilícitas pelas ruas sendo criminalizados pelo consumo, transgressores das normas e leis que conduzem o Estado. Tinham ainda alguns dos moradores de rua antigos por ali, incluídos no grupo de “viciados”, pertencendo a ele ou não. E a epidemia era iminente. A epidemia que sofrem as capitais. A doença da desumanização dos tratamentos, das prescrições comportamentais estáticas, do desrespeito ao próximo, da indiferença diante das injustiças e contradições da sociedade. Ah, e o crack? Mas o crack não é a epidemia. A nossa doença é outra!

Norhan

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