segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A troca

             Eu acordava antes dele para ir ao trabalho. Sempre o deixava dormindo, pois ele chegava tarde da noite de sua jornada de labuta de um assalariado do terceiro turno. Levantava de vagar e cobria a parte de seu corpo que estivesse exposta ao vento; preparava com carinho um café do jeito que ele mais gostava: forte, com pouco açúcar; arrumava-me com passos macios para não incomodá-lo ou despertá-lo. Assim eram todas as manhãs das nossas inúmeras semanas.

              Eu sempre fui boêmia, mas delicada. Sempre tive muitas amigas e vontade insaciável de viver tudo que me fosse possível. Até ele aparecer:

              Estava sentada, rodeada de amigas de faculdade, em uma das ruas mais bonitas de Curitiba, com seus diversos bares e tribos. Conversávamos sobre as aventuras da noite anterior, na qual cada uma de nós fora parar em um lugar diferente, com pessoas diferentes. Era uma conversa de muitos risos e goles. Entre uma história e outra, percebia aquele olhar claro a fitar meus movimentos; ele não parava de me olhar um minuto sequer. Ele tinha apenas um amigo consigo, mas não falavam muita coisa. Aqueles traços misteriosos, de cabelos loiros e olhos verdes, a barba mal feita, o tronco e os braços naturalmente imponentes, uma altura que me deixava trêmula cada vez que se levantava para ir ao banheiro masculino - que ficava bem perto de nossa mesa. Naquele sol, imaginei que fosse curitibano pelas roupas longas e bem comportadas. Ele tinha uma coragem no olhar, pois sempre me encarava até que eu fosse a primeira a desistir do embate entre os olhos - apesar de abusada, eu sempre desistia sem graça ou envergonhada. Ele sorria.

               Hoje, ele continua lindo, corajoso, misterioso e de poucas palavras. Quem mudou fui eu. Agora sou sua mulher, também de poucas palavras, mas muito pouco corajosa e com somente uma amiga de fato - que por sinal é sua irmã. Ganhei o amor que tanto ansiei, mas perdi a vida que tanto gostava. Que engraçado é o amor: tira para dar. Quase como uma troca. Eu não sou feliz, mas amo como se fosse.

               O trabalho de corretagem de imóveis nunca foi problema para mim, repleta de argumentos e muito pouca timidez. Mas o amor traz mudanças, sempre traz. Agora eu não trabalho para saciar as minhas demandas de ser feliz, mas sou feliz somente porque trabalho. De lá vem meus sorrisos, minhas histórias, meus romances, meus medos, meus planos, meus erros, minhas paixões... Enfim.

                Eu não amava e era feliz. Fui enganada pelo amor - agora amo muito (não se enganem, amo muito mesmo) e não consigo mais uma relação sadia com a felicidade. Meus clientes, em grande parte, me saciam além do profissional. Descobri que o amor e o sexo estão separados - são amigos - mas andam por si só. Em casa eu tenho apenas amor, o que vocês esperavam que eu fizesse? Quem é errado nessa história eu não sei. Mas no meu caso, o amor não cuida de tudo, não prevê tudo, tampouco se preocupa em ocupar todos os espaços. Eu fui inocente ao achar que eu amor era capaz de preencher todas as lacunas. Na verdade ele cria diversas novas lacunas, que serão preenchidas de um jeito ou de outro. E eu amo, mas trato de preencher as minhas.

Norhan Sumar

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

NEW - Vida de Fantoche por Paulo Henrique

Bem,

Conheci o Norhan numa cadeia chamada "Pensão da Dona Maria" . Éramos companheiros de cela, eu preso por vagabundagem e ele por tráfico de mulheres indígenas. Me ensinou muitas coisas e lhe sou muito grato até hoje. Nos intervalos de trabalho voluntário que fazíamos para reduzir nossa sentença, ele me ensinou latim, lógica, física quântica, história romana e como produzir destilados. Devo grande parte de minha erudição a este nobre malandro.
Agora que estamos livres, aceitei o convite para blogar meus devaneios aqui no Pensou, tá falado!


Vida de Fantoche

Aqui estou eu, sozinho no meu quarto, garimpando minha mente quase que de olhos fechados em busca dos sentimentos que sempre brotam durante os meus dias. Uma série de acontecimentos ao longo da minha vida define quem sou, não apenas em aspectos superficiais, mas até nos pequenos estalos de consciência que regem minha vontade de sentar nesta cadeira e escrever. Tudo em mim é conseqüência do que passou, do que vivi.

Em uma página poderia definir todos os principais acontecimentos que me moldaram definitivamente, como a separação dos meus pais ou minhas decepções amorosas, mas não vou. Relatarei aqui minha última aventura mental que me moveu de uma ponta a outra do Brasil.

Desde os 17 anos trabalhei em uma construtora de rodovias, a qual foi minha porta para conhecer várias cidades e estados. No início trabalhava ao lado do meu pai, sentia muito apoio por isso, até ele ser solicitado em uma obra na África e eu ter que me virar sozinho, aos 19 anos, viajando sozinho a trabalho, longe de casa e de minha mãe que morava em Curitiba. Não me sentia feliz, queria estudar, mesmo sem ânimo nenhum para tal, via bons exemplos nos Engenheiros das obras, alguns me tratavam como irmão e viam em mim um grande potencial. Fizeram-me ver que estava perdendo tempo, estava desperdiçando minha inteligência. Foi aí que o estalo de consciência mexeu as cordinhas, quase aos 22, decidi morar sozinho em Curitiba, arrumar um emprego e estudar.

Em Curitiba arrumei um emprego bom, morei sozinho e estudei (quase que nulamente) para o Enem. Desesperançoso com minha nota, mazelado com tanta frieza emocional dos habitantes e com seu custo de vida abusivo, nem mesmo a arquitetura fenomenal, a acessibilidade brilhante ou a beleza implícita das mulheres puderam mudar minha natureza. A "causa e efeito" agiam novamente sobre mim. O estalo de consciência manipulou a cruzeta e me fez decidir morar sozinho em Fortaleza, terra da alegria, do sol e da luta.

Aqui estou eu em Fortaleza, admirando casas que quase engolem as calçadas disformes, o mato brotando do meio-fio, as formigas escalando até o terceiro andar pra comer um mosquitinho que tombou morto ontem à noite, como se a natureza buscasse, de qualquer maneira, deixar seus vestígios. O Sol, o calor, o mormaço e o vento confortável entrando pela janela do quarto e saindo pela varanda da sala. A cidade onde um simples lugar no ônibus é disputado bravamente pelas pessoas, as ruas pontilhadas de bitucas, papéis e sujeirinhas, o sol direto na pele faz minar suor como um gêiser. Nada nesta terra tropical, nem mesmo as paredes sem reboco ou o vocabulário estranho e vicioso, desvanece a intensa e admirável luta diária nordestina, nem apaga o bom humor no rosto das pessoas simples que encaram com fé e felicidade esta terra.

Sigo com a fé inabalável de que um dia chegarei lá! Vim lutar como um fantoche forte que se move intensamente, mesmo que as cordinhas do destino não puxem na direção correta. Os estalos de consciência se tornarão estalos de cordinhas se arrebentando.


por Paulo Henrique


domingo, 23 de janeiro de 2011

Amor... volátil

Aquele não era um local típico para uma conversa entre dois amigos de vinte e poucos anos em plena descoberta do que é o amor, se realmente o amor é alguma coisa, de quem é o amor e pra que é o amor. Estavam cercados por árvores altas o bastante para tornar o cantarolar de seus moradores apenas uma melodia de fundo. Alguns outros jogadores também estavam frente a frente, separados apenas por tabuleiros com peças em formatos de torre, cavalos, rainhas e reis. Era uma praça grande, com um lindo chafariz no centro e um caminho a radiá-lo, tornando-o tão imponente para o cenário que ele de fato parecia jorrar sua água com algum tom audaz. O som melódico de um chafariz a comandar uma orquestra de pássaros distantes em seus ninhos nos altos galhos chegava a abafar o som produzido palas águas do rio que passava atrás dos jogadores.

Voltemos aos dois amigos:

"Pedro, eu a amo tanto que fica difícil acreditar em vida sem ela." Confidenciou enquanto seu bispo findava os galopes de um dos cavalos do amigo adversário.

"Ah, Rafa..." Coçou a cabeça pensando no que falar e arriscando sua próxima jogada. "Você não precisa imaginar uma vida sem ela. Ela já faz parte da sua vida, mesmo que não haja mais nada entre vocês."

"Você realmente ajudou!"

"Você não acha egoísmo amar alguém e não prezar pela felicidade desse alguém?" Seus olhares se cruzaram por alguns segundos e voltaram para o tabuleiro. "

"Egoísmo?" Desta vez franzindo a testa esperando um recuo do amigo. "Você acha que amar alguém é ser egoísta? Que tipo de amor você conhece? O seu amor pela Paola, cercado de traições e deslealdade?

"Amar de longe não quer dizer amar de menos, caro amigo." Continuou Pedro, pacientemente... "Até porque, ela mora em outro estado e não temos um compromisso dos mais sérios. Acreditamos que amar um ao outro é muito mais do que selar um acordo de exclusividade superficial... No nosso caso, quanto mais restrições e normas, mais erros e mágoas."

"Parece fácil demais pra você, Pedro." Continuou Rafael com os olhos marejados. "Eu não tenho a mesma facilidade com as mulheres que você tem, sabe muito bem disso. Eu preciso dela"

Com seu cavalo remanescente, Pedro demoliu uma das torres de seu amigo, enquanto dizia "não acho que seja uma questão de facilidade com mulheres, amigo. Acho que seja uma questão de facilidade com você mesmo." Antes que Rafael pudesse falar, Pedro continuou: "Você a ama. O sentimento é seu e não dela, ele está em você e não nela... mesmo que seja por ela, não é dela, é seu. Assim como a sua necessidade de tê-la... São sentimentos seus e não dela... E os dela por você não são seus, são dela, naturalmente."

Rafael golpeou com tanta força a rainha de Pedro com sua torre que a fez cair no chão e rolar lentamente até um mergulho ornamental no rio. "Mas são sentimentos que precisam dela pra existir, pra crescer, pra serem saciados e vividos..." Seu rosto branco estava vermelho agora, com exceção da testa que continuava coberta pelos cabelos pretos bagunçados simetricamente.

Pedro deu sorriso pro amigo, era visível a admiração em seu rosto... "e que sem ela diminuem gradativamente... se com ela crescem e existem, sem ela tendem a diminuir, tornarem-se lembranças de um aprendizado a mais. E se você quiser, talvez nem existirão mais." Seu cavalo galopou mais um pouco, agora pra findar com o bispo do amigo. "Nosso amor é um só, amigo... Se amamos três pessoas diferentes, é com um mesmo amor manifestado de formas e intensidades diferentes... É um sentimento terno! Mas consideravelmente volátil, pouco selitivo, teimoso e meio burro as vezes... Mas é um só e é todo nosso. Por isso nada melhor para esquecer um amor que um novo amor... No fundo, é o mesmo amor com um foco diferente... Benditas sejam as mil caras do amor!" Falou, sorrindo novamente.

"Sem esse papo de mudar o foco..." Interrompeu a fala enquanto seu olhar seguia os passos daquela morena de cabelos cacheados e formas sinuosas, com uma linda saia longa branca de detalhes bordados e uma blusa que mostrava parte de uma flor pintada em seu ombro direito, combinando com a flor que ela trazia nos cabelos. "A não ser que o foco seja aquele" Completou, enquanto seus olhos fitavam estáticos aquele andar feminino que parecia ter sido coreografado - Pedro atacava mais uma de suas peças.

"Ju!" Gritou Pedro, fazendo todos os jogadores das mesas ao lado olharem para ele com certa repulsa pós-susto. "Uma amiga de classe." Sussurrou ao amigo enquanto fazia um gesto que pedia pela aproximação da menina. "Ela foi feita pra você... Vou só apresentar, você faz o resto." Intimou Pedro ao olhar para a expressão de pavor do amigo.

"Nem pensar, Pedro... Minhas mãos já estão suando"

"Então trate de não apertar a mão dela e vá direto ao beijo no rosto..." Completou dando um sorriso mais aberto que o normal.

"Você é louco! Estou indo embora." Ameaçou, começando a levantar desesperado.

Antes que Rafael pudesse completar sua ação desesperada de fuga, as mãos de Pedro tocaram seu ombro com tamanha segurança que o fizeram desistir do ato, seja por medo ou pela presença da linda menina, agora há apenas um metro de seu tremulo corpo. Eles se olharam nos olhos por alguns segundos até que ela hesitasse e começasse a observar o restante do cenário - desde a mesa de xadrez aos calçados que Rafael usava. Quando a coragem tomou conta de seus atos e ele finalmente resolveu se levantar, olhou do tabuleiro para os olhos cor de mel no alto daqueles 1.65 m de charme feminino e sentiu seu corpo queimar, seu coração acelerou tão rapidamente que ele poderia arriscar uns trezentos batimentos por minuto. Olhou finalmente para Pedro, que ao lado da linda menina e com um sorriso orgulhoso deixou que sua boca se movesse sem emitir nenhum som "xeque-mate".

Norhan Sumar

Perdi você, ganhei o mundo

Quando te perdi
ganhei o mundo
justa troca...
ajusta a troca
que se aprova
a quem se tranca
limites e fronteiras
palpites e paredes.
Caminho sem voce
mas agora caminho
espaço em fora
diria Olavo
com a ave
destemida como eu.
E se doeu...
Passou

Passou
E se doeu
destemida como eu
com a ave
espaço em fora
mas agora caminho
Caminho sem voce
Palpites e paredes
limites e fronteiras
a quem se tranca
que se aprova
ajusta a troca
justra troca...
ganhei o mundo
Quando te perdi

Norhan Sumar

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Simplicidade

Descobri que sou simples; que me apego pelo simples; que me aconchego na simplicidade; que tenho hábitos simplistas; que meu desejo é simplesmente viver... Considerando a diferença discrepante entre vida e sobrevida.
Tenho usufruído, com um entusiasmo intrigante, de uma peça rara, que nem gosto de chamar de computador ou notebook. Eu o chamo pelo nome: "Matusalém". Sei lá se esse foi o primeiro laptop a ser vendido. Mas se não foi, passou bem perto disso. Ele até traz consigo uma entrada USB para conexão do meu famigerado pen drive (que eu imaginava não viver sem), mas acho que esse LIFEBOOK não gosta muito desses apetrechos inovadores que ajudaram a findar Sua Majestade. Eu cedi e estou salvando meus pensamentos em um disquete (inclusive esse).
Se é possível se encher de satisfação com isso eu não sei, apenas sei que me pego imaginando esta peça memorável na minha frente o dia inteiro. Aspirando pelo momento em que esse teclado sentirá o toque dos meus dedos a transcrever minhas idéias e vivências. E nem me deixo contaminar pela preocupação de ter de achar um computador dotado de simplicidade que ainda aceite o disquete no seu dia-a-dia (acredite, isso não é tão fácil assim... Mas se você está lendo esse pensamento agora, eu consegui).
Claro que não falo apenas disso quando cito a simplicidade. Falo de uma personalidade que o permita saciar com o que nos circunda o tempo todo: a vida; a ingenuidade de um cachorro que se aproxima sem saber se lucrará um pedaço de pão, um cafuné no cocoruto ou um safanão; a ingenuidade de alguns de nós que fazem a mesma coisa (inclusive eu); as cores ao nosso redor, que clamam por alguns momentos de atenção em vão - geralmente estamos ocupados demais pra receber a beleza do simplório; na esperança que me alimenta ao ver um adolescente dar lugar a um idoso no ônibus lotado; na vivacidade infinita das crianças; no cansaço questionável dos adultos; nos poucos amigos que falam a verdade sem medo de nos machucar (as feridas da mentira cicatrizam mais lentamente); na vaidade das mulheres, com seus perfumes, adornos, roupas, charme, penteados e uma vontade intrínseca de ser notada (não pelas mulheres, mas por nós... Saibamos apreciá-las e o discurso "as mulheres se vestem para outras mulheres" mudará imediatamente); no sorriso... Ah, o sorriso! A simplicidade enigmática trazida por ele me inunda.
E é por querer a simplicidade das coisas que acabo querendo tudo, querendo muito. Mas não quero aquele muito imensamente difícil de ter, quero aquele muito que eu encontro em você, nelas, neles, naquilo ou naquele. Quero a simplicidade imensurável que há em viver sendo o centro de minhas prioridades, despreocupado com o que esperam de mim, desde que eu seja o que eu espero, sem ferir ou atingir ninguém que não mereça. Se isso for egoísmo, sou egoísta por absorver a vida como se ela fosse passar por aqui e não mais voltar. Certamente isso não me impede de amar as pessoas e te-las ao meu redor. E pra quem acha que estou perdendo alguma coisa:
Ser simples não significa ser pouco.
Norhan Sumar

domingo, 16 de janeiro de 2011

Mário & Ana

Mário e Ana se amavam (ou se enganavam) de verdade. Mário era um rapaz bonito! Magro, branco de cabelos negros como a noite, Alto o bastante para olhar por cima boa parte dos homens de sua cidade, sorriso e olhares enganosamente confiantes, traços que se enquadravam nos padrões de beleza procurado por muitos - ou muitas. Além da ideologia política comunista, que no caso de Mário era apenas um subterfúgio para o ócio, ele não se ocupava com outros afazeres profissionais. Mergulhava nos conceitos de Capitalismo e alienação pelo trabalho mencionados por Marx e justificava a sua improdutividade com argumentos pouco eloquentes e demasiado retóricos - geralmente nas portas de bares.

Ana era o oposto. Não no que diz respeito a beleza. Ela era ainda mais bela! Graciosa, morena, encantava a todos com seu sorriso largo que lhe corava as bochechas, sua estatura mediana que passava um pouco de 1.60 m, seu olhar expressivo, a harmonia de seu rosto envolto pelos cachos que se seguiam até a cintura acompanhando as curvas simétricas e perfeitas de seu corpo. Ela, apesar de ideais parecidos com os dele, era uma aplicada estudante universitária e uma profissional dedicada no que se propunha a fazer. Acreditava que a mudança advém da instrumentalização pelo conhecimento e "mão na massa" e não apenas pela reflexão acerca de teorias.

Ela dizia amá-lo, mas não sentia mais necessidade de ser sua mulher. Ele sabia disso, mas preferia tê-la insatisfeita e mal amada do que vê-la entregar-se ao amor de outro.
Mário era o egoísta... Ana, a generosa! Permaneciam juntos, acreditando que poderiam ludibriar os olhos atentos do comodismo; burlar a repressão da rotina e desafogar o amor no mar de tédio e falta de afeto.
"Já falei que não te quero conversando com aquele otário!" Quase sempre se deixava levar pela insegurança segura de que ela não mais o amava como homem.
"Mário, ciúmes não combinam nada com você." Indiferente, ela respondia.
"Você já não me ama mais? Mas eu te dou um tempo pra pensar, você deve estar confusa... Você é ridícula! Como pode me fazer sofrer assim? Logo eu que fiz tudo por você, estive com você nos momentos mais difíceis... Você não vai encontrar alguém que te ame como eu amo..."
Ela chorava... Sem amor, sem paixão... Pena!
O curioso é que permaneciam juntos. Mesmo sabendo que aquela nau estava fadada ao naufrágio; enxergando que nada supera o desgaste do tempo mal aproveitado. Ela, ao contrário dele, não vivia, não traia, não amava. Ela já não sabia mais amar. Só vivia o doce sabor da felicidade que o mundo lá fora lhe podia oferecer quando rompia seus laços com ele. Mas, diante do próximo choro, reatava-se: tristeza...
Norhan Sumar 

sábado, 8 de janeiro de 2011

Sem medo e sem coragem

Na verdade só vim parar aqui, frente a esse "LIFEBOOK" de 1987 com sistema operacional de 1995 (cedido carinhosamente por um vizinho de quarto) após alguns tórridos minutos de duelo com o travesseiro - que de forma impressionante pareceu bem mais forte que eu - por me sentir enfraquecido pelas dúvidas, pela angústia, pela saudade da família, pela distância que me separa dos amigos, pelo cansaço de trabalhar incessantemente em algo totalmente fora da minha formação... Enfim, pelo preço que se paga por querer a distancia; por querer construir histórias pra contar em versos.
Falam de coragem comigo como se eu a tivesse. Um engano tamanho. Eu tenho vontade; algo que emana ao viver o novo, ao conhecer o novo, ao desbravar as minhas próprias fronteiras. Mas a coragem... Ah, essa ri de mim. A minha relação com a coragem é distante. Eu até posso vê-la, mas nunca a toco; tampouco a sinto perto de mim o bastante para dizer que somos íntimos.
Uma estabilidade enganosa motiva nossos planos. Depois de um diploma de ensino superior e alguns cursos técnicos em baixo do braço, vi que não quero a estabilidade de um bom salário e uma vida normal demais. Talvez eu queira essa vida daqui a alguns anos. Mas não acho justo que deixemos o ímpeto da juventude ser corrompido pela dinâmica social que suga as nossas forças e despreza a nossa capacidade de produção.
Eu parti em busca do novo e descobri que o caminho não é fácil - tal como diriam/disseram os mais velhos se eu comunicasse a minha decisão de partida. Mas os caminhos não precisam ser fáceis para serem bem vividos, aproveitados, desbravados e entre outras coisas, inesquecíveis. Eu quero alimentar a minha memória de experiencias praticadas enquanto a juventude me acompanha, enquanto a vontade ainda sobrepõe o medo. Porque eu sei que o medo vem; entra na nossa vida sem dar sinal. E quando vemos, lá está o nosso novo comandante, cauteloso, calmo, pouco errante, muito apreensivo, deveras defensivo... O medo - por vezes confundido com a sensatez ou experiência acumulada.
E por falta de palavras pra continuar explicando a minha ânsia por essa descoberta que fascina meu âmago; também por notar que este texto está se alongando e ficando um pouco desconexo, aqui encerro dizendo que coragem não significa ausência de medo, porque mesmo achando o medo um adversário pífio diante da sagacidade juvenil, continuo vendo de longe a coragem, sempre um passo a frente - rindo de mim a cada hesitação, falando de longe em tom superior: eu avisei!
Por Norhan Sumar

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Uma estória da felicidade


Deixa-me contar uma estória de vinte anos atrás:
Os botões de sua camisa parcialmente abertos, seus cabelos desarrumados, suas feições de um cansaço que consumia até mesmo quem olhasse, não tinham explicação para ela. Já se passavam seis horas do fim do expediente e somente agora a porta da sala se abriu para mostrar um homem que parecia ter sido abraçado fortemente pela noite que o conduzia do lado de fora. Carregava em uma das mãos sua maleta, que à exemplo do dono não parecia estar em seus melhores dias. Noutra o seu paletó, amarrotado, roto, também aspirando por dias de descanso.
            "Não é justo o que você faz..." Desabafou. "Enquanto eu divido meu tempo entre trabalho, filha e casa, você vai curtindo a sua vida da maneira que quiser. Mas eu devia imaginar, a esbórnia sempre lhe foi convidativa." Dizia ela, carregando uma sutileza que não impedia que sua indignação se fizesse perceber.        
            "O que não é justo?" Ele respondeu. "Trabalhar feito um louco por um salário tão ruim que mal dá pra alimentar os três dentro dessa casa? Isso é injusto? É, eu concordo com você. E digo mais, a esbórnia que me era convidativa é a mesma que eu conheci você."
            "Você não tem vergonha?" Agora com uma lágrima minando em seus olhos. "Esperamos você para o jantar. A sua filha queria te contar sobre as aulas de dança e o violão com professor novo que começa amanhã. Como pode deixar a sua filha sentir sua falta morando no mesmo lugar que ela? E ainda chegar desse jeito em casa..." Como o de costume, ela se entregou de vez à emoção e deixou livres as lágrimas para que fizessem de seu rosto o que quisessem.
            "Esse aqui é só um homem cansado, esgotado pelo trabalho." Respondeu soltando a mala sobre a mesa, derrubando o vaso de plantas que ornamentava a chegada dos visitantes. “Eu não tenho tempo para me preocupar com aulas de dança. Por que você não tenta entender? Tudo que eu faço é beber uma cerveja depois de ter a alma sugada por diabos fantasiados de gerente e não tenho o direito de chegar em casa em paz..."
Por horas discutiram mais uma vez. Cada um tratava de falar de seus problemas e suas mazelas pessoais e profissionais. Soluções não costumavam ser o fator preponderante dessas conversas. Ao contrário disso, as acusações eram tratadas como protagonistas a estrelar um filme em Hollywood.
 No final do corredor, em um quarto com paredes pintadas em cores diferentes, com pôsteres e cartazes de mulheres nos mais audaciosos passos de dança, estava a menina, com todos os seus onze anos recolhidos em um canto do quarto, concentrados em não se fazer ouvir. A menina era realmente talentosa para dança. Mas seu pai desejava uma filha médica, livre de todo "sofrimento" que os pais passavam e que originavam todos esses longos embates. Naquela casa eu só me aproximava da menina, só podia caminhar ao seu lado. Gostava do seu sorriso metálico, seus cabelos avermelhados e suas sardas a mapear o rosto. Divertia-me com seus planos de um futuro ao meu lado, repleto de saciedade (que me é muito familiar) e realizações.
Sempre que podia, corria até a rua simpática daquele bairro de classe média para visitar a casa branca de janelas e porta azuis. Eu entrava pelos fundos, tanto por ser o mais rápido acesso ao quarto da menina, quanto por evitar o contato com sua mãe. Não que fosse de meu gosto fazer isso, mas eu não estava autorizada a me aproximar de pessoas como ela. Além disso, que agradável era a companhia daquelas sardas sempre comprimidas pelo movimento de um sorriso.
Vez por outra eu me deparava com ele na rua. Sim, com o pai da menina. Mas como disse, não estava autorizada a falar com ele. Ele de fato trabalhava muito. Eu gostava de acompanhá-lo de longe no trajeto até sua casa. O máximo que ele fazia era parar em um bar com aspecto muito antigo na esquina daquela rua e pedir uma cerveja bem gelada. Mas sempre interrompia a conversa após esses breves goles e antes que eu pudesse chegar mais perto caminhava até sua casa com os mesmos passos arrastados, ao encontro de mais uma discussão acerca de seu atraso. Eu observava de longe sua mãe também. Ela era uma mulher competente, dedicada, além de ser linda. Sua filha parecia com ela, a não ser pelos olhos verdes que eram os do pai. Eu tinha vontade de dizer a ela que ele realmente trabalhava muito e que não vivia na esbórnia como ela presumia. A mãe tinha tudo para ter minha companhia e amizade, mas eu hesitava por achar que ela não saberia se acostumar com a minha presença.
Aquele foi um dia atípico, eu estava no quarto da menina, mas ela não estava lá. Eu olhava todos aqueles pôsteres e desenhos de saltos e passos; via sua cama tão bem arrumada. Ah, só o cheiro dela me fazia permanecer ali, deixando algo de mim para quando ela chegasse. Ela tinha ido a um passeio da escola que renderam algumas horas de atraso devido a um ônibus quebrado. Mas, uma de minhas virtudes é a paciência e eu esperava ansiosamente para ve-la tocando seu violão todas as semanas. Aqueles acordes junto com aqueles sorrisos me atraiam, me convidavam a sentar e admirar o seu gosto por mim e pela vida. Mas naquela tarde não foi isso que eu vi... Fui espiar a sala, cuidadosamente, para ver se a menina já estava a tocar seu violão.
Foi sua mãe quem eu vi. Nua, ela estava completamente nua sobre o couro do sofá de três lugares. Beijavam-se com tanto afinco que por alguns segundos eu mal consegui desviar o olhar. Ela agora parecia saber se comunicar, não mencionava seus receios, suas mazelas, ressacas morais nem mesmo figuravam a lista de possíveis assuntos. Eu me sentia mais próxima dela; queria tocá-la, estar ao seu lado. Ela na verdade parecia me chamar como nunca antes. Que mulher capaz de me fazer familiar era aquela que eu nunca havia visto? Eu relutei e caminhei para fora da casa, ainda confusa. Que jardim lindo eles tinham! Eram margaridas que acompanhavam quem chegava, desde o portão até a porta da entrada. Elas eram de várias cores e circundavam um chão de pedras muito bem encaixadas. Ao fitar o portão eu reconheci aquele paletó, aquela mesma maleta com aspecto abatido carregada pela mesma mão que segurava um buquê de flores. Mas notei que o andar não estava arrastado, ao contrário disso, estava decidido. E pela primeira vez eu o vi sorrir. Sim, ele estava sorrindo. Mas foi ao sair do seu caminho para não ser atropelada por passos que sustentavam cerca de um metro e noventa (presumo eu) que me dei conta. Não era ele o provedor da alegria que ela estava a sentir há pouco. Corri o mais rápido que pude para a sala e vi sobre a mesa um violão. Era do professor; era o professor. Como eu sou burra! Como eu pude me iludir achando que ela me seria atraente senão através de outros estímulos - senão por estímulos que não fossem os de seu marido?
Eu não fiquei para ver o que houve lá. Desculpe não contar essa parte da história com riqueza de detalhes. Mas retornei inúmeras vezes e nunca mais a menina me deixou entrar. O pai, esse eu vi poucas vezes naquele mesmo bar, dessa vez incapaz de interromper a prosa após poucos goles; incapaz como nunca de cativar minha companhia. A mãe, além de não me deixar entrar na sua vida, fechou as portas de sua casa. Que casal tolo! Bastava que eles deixassem entrar naquele lar a comunicação e o respeito que eu poderia me satisfazer com alguns bons almoços de domingo.
A menina, minha antiga e promissora amiga, nunca mais recebeu minha visita em seu quarto ou em qualquer outro lugar. Ela foi arrancada de mim (ou vice-versa) pela insensibilidade alheia. E, com tantos anos de experiência, sei que será difícil darmos as mãos novamente. Certo dia eu a vi, com aquelas mesmas sardas e lindos olhos, agora massacrados pela falta de brilho. Ela caminhava com a mesma postura de dançarina, mas não trajava mais do que uniformes de secretária. Notei a diferença em seu sorriso. Não era mais o sorriso que eu costumava entregar a ela naqueles anos - era um sorriso entregue por algo perigoso que tenta avidamente fazer o meu papel por aí: um tal de comodismo.  
Por Norhan Sumar