terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Uma estória da felicidade


Deixa-me contar uma estória de vinte anos atrás:
Os botões de sua camisa parcialmente abertos, seus cabelos desarrumados, suas feições de um cansaço que consumia até mesmo quem olhasse, não tinham explicação para ela. Já se passavam seis horas do fim do expediente e somente agora a porta da sala se abriu para mostrar um homem que parecia ter sido abraçado fortemente pela noite que o conduzia do lado de fora. Carregava em uma das mãos sua maleta, que à exemplo do dono não parecia estar em seus melhores dias. Noutra o seu paletó, amarrotado, roto, também aspirando por dias de descanso.
            "Não é justo o que você faz..." Desabafou. "Enquanto eu divido meu tempo entre trabalho, filha e casa, você vai curtindo a sua vida da maneira que quiser. Mas eu devia imaginar, a esbórnia sempre lhe foi convidativa." Dizia ela, carregando uma sutileza que não impedia que sua indignação se fizesse perceber.        
            "O que não é justo?" Ele respondeu. "Trabalhar feito um louco por um salário tão ruim que mal dá pra alimentar os três dentro dessa casa? Isso é injusto? É, eu concordo com você. E digo mais, a esbórnia que me era convidativa é a mesma que eu conheci você."
            "Você não tem vergonha?" Agora com uma lágrima minando em seus olhos. "Esperamos você para o jantar. A sua filha queria te contar sobre as aulas de dança e o violão com professor novo que começa amanhã. Como pode deixar a sua filha sentir sua falta morando no mesmo lugar que ela? E ainda chegar desse jeito em casa..." Como o de costume, ela se entregou de vez à emoção e deixou livres as lágrimas para que fizessem de seu rosto o que quisessem.
            "Esse aqui é só um homem cansado, esgotado pelo trabalho." Respondeu soltando a mala sobre a mesa, derrubando o vaso de plantas que ornamentava a chegada dos visitantes. “Eu não tenho tempo para me preocupar com aulas de dança. Por que você não tenta entender? Tudo que eu faço é beber uma cerveja depois de ter a alma sugada por diabos fantasiados de gerente e não tenho o direito de chegar em casa em paz..."
Por horas discutiram mais uma vez. Cada um tratava de falar de seus problemas e suas mazelas pessoais e profissionais. Soluções não costumavam ser o fator preponderante dessas conversas. Ao contrário disso, as acusações eram tratadas como protagonistas a estrelar um filme em Hollywood.
 No final do corredor, em um quarto com paredes pintadas em cores diferentes, com pôsteres e cartazes de mulheres nos mais audaciosos passos de dança, estava a menina, com todos os seus onze anos recolhidos em um canto do quarto, concentrados em não se fazer ouvir. A menina era realmente talentosa para dança. Mas seu pai desejava uma filha médica, livre de todo "sofrimento" que os pais passavam e que originavam todos esses longos embates. Naquela casa eu só me aproximava da menina, só podia caminhar ao seu lado. Gostava do seu sorriso metálico, seus cabelos avermelhados e suas sardas a mapear o rosto. Divertia-me com seus planos de um futuro ao meu lado, repleto de saciedade (que me é muito familiar) e realizações.
Sempre que podia, corria até a rua simpática daquele bairro de classe média para visitar a casa branca de janelas e porta azuis. Eu entrava pelos fundos, tanto por ser o mais rápido acesso ao quarto da menina, quanto por evitar o contato com sua mãe. Não que fosse de meu gosto fazer isso, mas eu não estava autorizada a me aproximar de pessoas como ela. Além disso, que agradável era a companhia daquelas sardas sempre comprimidas pelo movimento de um sorriso.
Vez por outra eu me deparava com ele na rua. Sim, com o pai da menina. Mas como disse, não estava autorizada a falar com ele. Ele de fato trabalhava muito. Eu gostava de acompanhá-lo de longe no trajeto até sua casa. O máximo que ele fazia era parar em um bar com aspecto muito antigo na esquina daquela rua e pedir uma cerveja bem gelada. Mas sempre interrompia a conversa após esses breves goles e antes que eu pudesse chegar mais perto caminhava até sua casa com os mesmos passos arrastados, ao encontro de mais uma discussão acerca de seu atraso. Eu observava de longe sua mãe também. Ela era uma mulher competente, dedicada, além de ser linda. Sua filha parecia com ela, a não ser pelos olhos verdes que eram os do pai. Eu tinha vontade de dizer a ela que ele realmente trabalhava muito e que não vivia na esbórnia como ela presumia. A mãe tinha tudo para ter minha companhia e amizade, mas eu hesitava por achar que ela não saberia se acostumar com a minha presença.
Aquele foi um dia atípico, eu estava no quarto da menina, mas ela não estava lá. Eu olhava todos aqueles pôsteres e desenhos de saltos e passos; via sua cama tão bem arrumada. Ah, só o cheiro dela me fazia permanecer ali, deixando algo de mim para quando ela chegasse. Ela tinha ido a um passeio da escola que renderam algumas horas de atraso devido a um ônibus quebrado. Mas, uma de minhas virtudes é a paciência e eu esperava ansiosamente para ve-la tocando seu violão todas as semanas. Aqueles acordes junto com aqueles sorrisos me atraiam, me convidavam a sentar e admirar o seu gosto por mim e pela vida. Mas naquela tarde não foi isso que eu vi... Fui espiar a sala, cuidadosamente, para ver se a menina já estava a tocar seu violão.
Foi sua mãe quem eu vi. Nua, ela estava completamente nua sobre o couro do sofá de três lugares. Beijavam-se com tanto afinco que por alguns segundos eu mal consegui desviar o olhar. Ela agora parecia saber se comunicar, não mencionava seus receios, suas mazelas, ressacas morais nem mesmo figuravam a lista de possíveis assuntos. Eu me sentia mais próxima dela; queria tocá-la, estar ao seu lado. Ela na verdade parecia me chamar como nunca antes. Que mulher capaz de me fazer familiar era aquela que eu nunca havia visto? Eu relutei e caminhei para fora da casa, ainda confusa. Que jardim lindo eles tinham! Eram margaridas que acompanhavam quem chegava, desde o portão até a porta da entrada. Elas eram de várias cores e circundavam um chão de pedras muito bem encaixadas. Ao fitar o portão eu reconheci aquele paletó, aquela mesma maleta com aspecto abatido carregada pela mesma mão que segurava um buquê de flores. Mas notei que o andar não estava arrastado, ao contrário disso, estava decidido. E pela primeira vez eu o vi sorrir. Sim, ele estava sorrindo. Mas foi ao sair do seu caminho para não ser atropelada por passos que sustentavam cerca de um metro e noventa (presumo eu) que me dei conta. Não era ele o provedor da alegria que ela estava a sentir há pouco. Corri o mais rápido que pude para a sala e vi sobre a mesa um violão. Era do professor; era o professor. Como eu sou burra! Como eu pude me iludir achando que ela me seria atraente senão através de outros estímulos - senão por estímulos que não fossem os de seu marido?
Eu não fiquei para ver o que houve lá. Desculpe não contar essa parte da história com riqueza de detalhes. Mas retornei inúmeras vezes e nunca mais a menina me deixou entrar. O pai, esse eu vi poucas vezes naquele mesmo bar, dessa vez incapaz de interromper a prosa após poucos goles; incapaz como nunca de cativar minha companhia. A mãe, além de não me deixar entrar na sua vida, fechou as portas de sua casa. Que casal tolo! Bastava que eles deixassem entrar naquele lar a comunicação e o respeito que eu poderia me satisfazer com alguns bons almoços de domingo.
A menina, minha antiga e promissora amiga, nunca mais recebeu minha visita em seu quarto ou em qualquer outro lugar. Ela foi arrancada de mim (ou vice-versa) pela insensibilidade alheia. E, com tantos anos de experiência, sei que será difícil darmos as mãos novamente. Certo dia eu a vi, com aquelas mesmas sardas e lindos olhos, agora massacrados pela falta de brilho. Ela caminhava com a mesma postura de dançarina, mas não trajava mais do que uniformes de secretária. Notei a diferença em seu sorriso. Não era mais o sorriso que eu costumava entregar a ela naqueles anos - era um sorriso entregue por algo perigoso que tenta avidamente fazer o meu papel por aí: um tal de comodismo.  
Por Norhan Sumar

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