São
seis da manhã e o celular já toca as notas que sempre chegam para tira-lo do
sono. Ele, Israel, odeia o celular, talvez seja só porque interrompe as únicas
horas em que ele pode ter o que quer. Levanta-se e já não vê mais sua mãe, ela
costuma sair meia hora antes para o trabalho do outro lado da cidade. Seu pai,
ele nunca viu. Acorda com um beijo carinhoso sua irmã de apenas quatro anos,
oito a menos que ele. A menina permanece na cama da mãe todos os dias, ela
dorme lá, não fosse assim, seria na cama dele. Não há um café da manhã, apenas
a mesa, todos os dias posta por insistência da mãe. Aliás, há café, só café. A
irmã, por sorte tem a creche que se inicia às sete, meia hora antes da escola
dele, ambos comerão por lá. Também por sorte, ou por direito.
Bem
perto dali, no “asfalto”, apenas algumas centenas de degraus abaixo, o celular
por sorte só toca quarenta minutos depois. Ele, Gustavo, também odeia o
celular, talvez só por ser adolescente mesmo. Acorda quase sempre com a voz da
mãe, à mesa na companhia de seu irmão mais velho. Beijos e “bom dia” para o
início do desjejum. Seu pai, de vez em quando liga para não perder o costume. Sua
mãe é quem o leva para a escola depois do café, enquanto seu irmão ruma para a
faculdade. O quinto ano de Engenharia parecia ter levado de seu irmão aquela
leveza de alguns anos atrás.
Israel
deixa sua irmã no caminho, sempre aos cuidados da tia Benedita da creche,
simpática e firme, se é que seja possível. Também no caminho, quase sempre
encontra alguns amigos de sua infância, sem uniforme escolar, hora portando
rádios comunicadores e armas, hora portando a companhia do pai e roupas sujas
de cimento. Questiona-se sobre qual das possibilidades está mais próxima dele
já que não tem pai. A insistência da mãe é o que mantém na escola. Por ele trabalharia,
para ajudar a mãe, e também porque gosta muito de biscoito. Talvez pudesse
comprar alguns.
Gustavo
segue no carro de sua mãe. A escola não é muito longe, mas como mora ao pé do
morro, ela prefere não correr o risco de deixar que percorra o caminho sozinho.
Também passa por alguns de seus amigos de infância, na companhia dos pais,
empregadas ou até sozinhos, mas todos com seus uniformes escolares. Gustavo
também não estudaria se fosse por ela. Se para ser advogado tivesse que
enfrentar salas de aula por 60 horas semanais durante os próximos 10 anos, ele
desistiria bem antes não fosse a pressão da mãe. Queria ser marinheiro e ir pra
onde lhe desse na telha. Talvez como advogado pudesse fazer isso.
Nas
salas de aula, as angustias eram quase sempre as mesmas, não fossem as lacunas deixadas
pela falta de professores na escola de Israel. No mais, anseio pela hora do
recreio, provas, colas, educação física, aulas infinitas de matemática. Aquela
coisa que certa vez a professora de português de Israel falou sobre agregar
valores, ele não sabe bem se acontecia de fato. E se acontecia, era tão sutil
que ele nem percebia.
Na
volta, por vezes sem esperança alguma, em outras com uma fagulha acesa, Israel pensava,
ao subir seus degraus da vida olhando para baixo, na falta de sorte que tinha.
Que tipo de sorte(io) divino o colocara a apenas algumas centenas de degraus da
facilidade, da felicidade, da esperança, da fartura, do poder, dos biscoitos,
do asfalto?
Gustavo
não questionava muito. Nutria apenas a curiosidade de saber como era tudo logo
ali em cima. Como eram as brincadeiras, as casas, as mães. Perguntara a sua mãe
certa vez, que apenas disse que era cheio de pessoas armadas vendendo drogas e
matando gente, assim como noticiam os jornais. Gustavo também subia seus
degraus de vida, mas eram apenas alguns até o segundo andar.
De
degrau em degrau, caminhavam os dois para algum lugar desconhecido. Seja para o
segundo andar após alguns degraus, seja para bem mais alto após centenas deles.
O lugar até poderia ser o mesmo no final da caminhada, mas certamente demoraria
mais a chegar quem tem mais a subir. As semelhanças que os uniam, garantidas
pelos direitos ou pela sorte, mascaravam as diferenças. E aí está a questão que
ninguém pergunta em nenhuma das escolas: não seriam as diferenças os melhores
alimentos da revolta? Pois essa costuma se alimentar do que lhe cruza o
caminho, inclusive biscoitos.