terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Tempos mais modernos


Em meio ao caos disfarçado
Compra-se vida sem saber
Todos se rendem a viver
De alguma forma controlados

O som da voz é quase sempre amordaçado
E por não saber a hora de sorrir,
já não se acorda sem querer dormir
Pois tempo é lucro no mundo do mercado

Tem quem trabalha e não consome
Quem coma muito bem
Porém também quem tenha fome

E na injustiça cresce o bicho homem
O sofrimento permanece aquém
Comumente só se muda o nome

A fuga


"Loucura"
Agnelo Bronzino
Robin era um menino pacato, quieto, aguerrido somente quando se tratava de reparar alguma injustiça com o gordinho ou o nerd da turma da escola. Gostava de ser chamado de Robin e sempre dizia não ver problema algum em ter inventado seu próprio apelido, pois quando outros inventavam geralmente eram depreciativos. Costumava dizer que o apelido era em homenagem ao Hood, por ser o único super-herói que fazia uma justiça real de reparar as desigualdades, roubando de ricos e dando aos pobres. “Essa coisa de monstro de terra, robô com poderes, homem pinguim, gente voando, pode até ser divertido, mas não existe. Existe gente rica e gente pobre, gente com muito e gente miserável. Herói pra mim é quem enxerga isso.” Dizia sempre com veemência, alheio a quase tudo que poderia ser mais comum por conta de sua idade. Robin não se interessava muito pelas rodas de conversa da sua turma de sétima série colegial. A única coisa que o rapaz não conseguia renegar era a ebulição oriunda da idade: corpo, pelos, hormônios, dúvidas, revolta. Certa vez, num daqueles dias em que o adolescente parece não caber dentro de si e algo precisa sair - tudo precisa ser dito ou não haverá espaço para pensar mais, criar mais - ele perguntou a professora de geografia porque era mais importante decorar as capitais estaduais do que descobrir os motivos pelos quais alguns homens tinham muita terra, muitas casas e outros homens não tinham nada e viviam nas ruas. A professora, confusa, preferiu encarar como uma afronta ao seu plano de aula diante da insistência do menino por uma resposta e lhe aplicou uma ótima advertência e um passeio à direção. Robin era perguntador, curioso, mas ninguém parecia interessado em fazer as mesmas perguntas que ele. Me parecia estar nascendo uma árvore, repleta de galhos, bons frutos e uma bela sombra a servir muitos que passassem por ela, mas a quantidade de jardineiros imperitos a podar seus galhos, seus questionamentos, arrancando-lhes os frutos antes de estarem maduros era tanta que as dúvidas foram permanecendo aprisionadas, a capacidade de expor foi se eximindo aos poucos. A questão é: as palavras precisam ser ditas, as perguntas precisam ser feitas, as respostas precisam ser perseguidas (e nem sempre encontradas), ou a mente transborda.


Robin estava tirando dos ricos e dando aos pobres, assim como sempre quis. Com seu arco em punho, de flecha em flecha ia derrubando os guardas até chegar ao próximo tesouro para então fazer a festa de quem queria no mínimo comer. Corria pelas ruas bravejando contra as injustiças do mundo, dizendo ser Robin Hood e tentando formar um exército de aliados. O apelido de criança (que ele dera a si próprio) se tornou realidade, ainda que só para ele. Foi seu primeiro delírio, e nem teve tempo de chegar ao momento de repartir o tesouro encontrado, tranquilizantes impediram o feito nobre da justiça, homens de branco se encarregaram da imobilização com aquela camisa estranha que faz a pessoa abraçar a si mesma – o menino percebeu e achou intrigante que único abraço recebido ao vesti-la seria o próprio – bela recompensa por fazer justiça. Ninguém falava nada além de nomes de remédio e doses acompanhadas de olhares inexpressivos que pareciam significar alguma coisa. Enquanto a mãe chorava o menino só tentava explicar que ele estava fazendo o justo, sem entender porque ninguém concordava com ele.
A mente dele transbordou pela primeira vez aos dezoito anos. Não se pode subestimar a mente, ao passo que a enchemos a todo o tempo com tanta contradição e perguntas sem respostas, devemos esvaziá-la na mesma medida – ou ela encontrará a sua própria rota de fuga.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Ingênua


Eduardo insistia em dizer que “antes de cobrarem dele uma conduta ética, moral, que a filosofia tratasse de resolver o que era cada uma delas”. Em suas aulas de Economia Política nas salas da Universidade, a figura de professor o permitia o privilégio de incitar todo tipo de debate para então deixar que os argumentos se confrontassem enquanto ele apenas observava sem manifestação. “O debate quase nunca se faz entre idéias, mas entre pessoas e orgulhos, que as vezes até se preocupam com as idéias”, se defendia ao conversar com Alfredo, professor de Ciência Política e fervoroso membro do Partido Comunista. Nos idos da conversa de bar dizia que a única ética que o contemplava era a contida no código da profissão. “E olhe lá!” afirmava. Duas horas de conversa se passaram para que Alfredo iniciasse sua confidência:
- Edu, tem uma aluna... Cara, 18 anos de docência e uma conduta sem desvios. Mas ela eu não sei te dizer o que tem, ela é única, meu camarada. Essa menina está me fazendo sentir vivo de novo.
Alfredo insistia que ele continuava a ser ético, ou seja lá o que fosse, apesar do romance. Com os olhos marejados, perdidos em algum lugar acima dos ombros de Eduardo, comentava a silhueta jovial, cabelos cacheados até aquelas nádegas redondas e imponentes, olhos cheios de vivacidade, seios soltos por de trás daqueles vestidos, afirmando ainda mais sua liberdade subjetiva. “Ela é dotada de uma ingenuidade que me excita, me tira do prumo completamente, meu caro”.
- Até a ingenuidade pode ter seu traço intencional, amigo – sorriu Eduardo com o canto da boca antes de continuar – a mulher que sabe o poder que a ingenuidade exerce sobre os homens, será ingênua sempre que puder.
No instante que Eduardo tentava arrancar do amigo, diante daquele “desvio de conduta”, alguma tranqüilidade ou sorriso com tais filosofias baratas, Alfredo, ao contrário, empalideceu instantaneamente e fixou os olhos inexpressivos na porta do bar. Parecia estar vendo o próprio Che Guevara entrando. Mas via, na verdade, a sua aluna, jovial, travessa, trazendo uma segurança no andar e algo de instigante no sorriso. Trajava um jeans que abraçava suas pernas até morrerem em suas sandálias de couro trançado até os tornozelos, a blusa era algo indiano ou afim, que deixava um dos ombros a mostra, no cabelo um rabo de cavalo que deixava boa parte solta nas costas. Eduardo até compreendeu melhor seu amigo, era realmente uma jovem muito atraente, mas caminhava na direção dos dois com seu braço rodeando a cintura de um rapaz também sorridente e vivaz, beijando-a o pescoço de tempos em tempos sem parar de andar. Daí a perplexidade de Alfredo. Parou diante da mesa e com um “olá professores, é bom saber que vocês são seres humanos também.” - um sorriso que não deixava claro ser de prazer ou ironia, tão sensual que até Eduardo a desejou em silêncio – se abaixou e ao beijar o rosto agora corado de Alfredo e continuou: “um beijo no meu melhor professor”, e se atirou novamente nos braços do rapaz – um merdinha, segundo Alfredo – que sorriu para os professores acenando com a cabeça e deu as costas, levando consigo a aluna e sua ingenuidade.
- É meu camarada, a ingenuidade nas mãos erradas pode causar um estrago.
Pobres homens, sempre mais ingênuos do que imaginam.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Palavras


Ideias na Cabeça
Autor desconhecido


Começa o jogo e elas são reféns

Prisioneiras no cárcere de nós

Tentando construir a fuga pela voz

Ou na timidez de qualquer gesto

Enfrentando todo tipo de protesto

Se fazem livres entre sinais e sons

Você inerte enquanto elas dão o tom

O jogo inverte, pois, seus papéis

E ao dizê-las você descobre o refém que és

Norhan Sumar

domingo, 2 de setembro de 2012

Largada


                      
São seis da manhã e o celular já toca as notas que sempre chegam para tira-lo do sono. Ele, Israel, odeia o celular, talvez seja só porque interrompe as únicas horas em que ele pode ter o que quer. Levanta-se e já não vê mais sua mãe, ela costuma sair meia hora antes para o trabalho do outro lado da cidade. Seu pai, ele nunca viu. Acorda com um beijo carinhoso sua irmã de apenas quatro anos, oito a menos que ele. A menina permanece na cama da mãe todos os dias, ela dorme lá, não fosse assim, seria na cama dele. Não há um café da manhã, apenas a mesa, todos os dias posta por insistência da mãe. Aliás, há café, só café. A irmã, por sorte tem a creche que se inicia às sete, meia hora antes da escola dele, ambos comerão por lá. Também por sorte, ou por direito.
Bem perto dali, no “asfalto”, apenas algumas centenas de degraus abaixo, o celular por sorte só toca quarenta minutos depois. Ele, Gustavo, também odeia o celular, talvez só por ser adolescente mesmo. Acorda quase sempre com a voz da mãe, à mesa na companhia de seu irmão mais velho. Beijos e “bom dia” para o início do desjejum. Seu pai, de vez em quando liga para não perder o costume. Sua mãe é quem o leva para a escola depois do café, enquanto seu irmão ruma para a faculdade. O quinto ano de Engenharia parecia ter levado de seu irmão aquela leveza de alguns anos atrás.
Israel deixa sua irmã no caminho, sempre aos cuidados da tia Benedita da creche, simpática e firme, se é que seja possível. Também no caminho, quase sempre encontra alguns amigos de sua infância, sem uniforme escolar, hora portando rádios comunicadores e armas, hora portando a companhia do pai e roupas sujas de cimento. Questiona-se sobre qual das possibilidades está mais próxima dele já que não tem pai. A insistência da mãe é o que mantém na escola. Por ele trabalharia, para ajudar a mãe, e também porque gosta muito de biscoito. Talvez pudesse comprar alguns.
Gustavo segue no carro de sua mãe. A escola não é muito longe, mas como mora ao pé do morro, ela prefere não correr o risco de deixar que percorra o caminho sozinho. Também passa por alguns de seus amigos de infância, na companhia dos pais, empregadas ou até sozinhos, mas todos com seus uniformes escolares. Gustavo também não estudaria se fosse por ela. Se para ser advogado tivesse que enfrentar salas de aula por 60 horas semanais durante os próximos 10 anos, ele desistiria bem antes não fosse a pressão da mãe. Queria ser marinheiro e ir pra onde lhe desse na telha. Talvez como advogado pudesse fazer isso.
Nas salas de aula, as angustias eram quase sempre as mesmas, não fossem as lacunas deixadas pela falta de professores na escola de Israel. No mais, anseio pela hora do recreio, provas, colas, educação física, aulas infinitas de matemática. Aquela coisa que certa vez a professora de português de Israel falou sobre agregar valores, ele não sabe bem se acontecia de fato. E se acontecia, era tão sutil que ele nem percebia.
Na volta, por vezes sem esperança alguma, em outras com uma fagulha acesa, Israel pensava, ao subir seus degraus da vida olhando para baixo, na falta de sorte que tinha. Que tipo de sorte(io) divino o colocara a apenas algumas centenas de degraus da facilidade, da felicidade, da esperança, da fartura, do poder, dos biscoitos, do asfalto?
Gustavo não questionava muito. Nutria apenas a curiosidade de saber como era tudo logo ali em cima. Como eram as brincadeiras, as casas, as mães. Perguntara a sua mãe certa vez, que apenas disse que era cheio de pessoas armadas vendendo drogas e matando gente, assim como noticiam os jornais. Gustavo também subia seus degraus de vida, mas eram apenas alguns até o segundo andar.
De degrau em degrau, caminhavam os dois para algum lugar desconhecido. Seja para o segundo andar após alguns degraus, seja para bem mais alto após centenas deles. O lugar até poderia ser o mesmo no final da caminhada, mas certamente demoraria mais a chegar quem tem mais a subir. As semelhanças que os uniam, garantidas pelos direitos ou pela sorte, mascaravam as diferenças. E aí está a questão que ninguém pergunta em nenhuma das escolas: não seriam as diferenças os melhores alimentos da revolta? Pois essa costuma se alimentar do que lhe cruza o caminho, inclusive biscoitos.


Norhan Sumar

terça-feira, 31 de julho de 2012

Foto: autor desconhecido - Escultura:   Zenos Frudakis¹


É preciso que sejamos livres. Livres para acessar, pensar, criticar e nos revoltarmos quando necessário. É preciso que sejamos livres para expor opiniões e sentimentos. É preciso haver liberdade para que possamos ir e não ir, vir ou ficar onde estamos. Mas é preciso que haja liberdade com ética e não liberalismo, para que possamos diminuir as distâncias provocadas pelo individualismo. Precisamos derrubar as paredes dessa prisão claustrofóbica do fatalismo, onde colocam nas nossas cabeças que a mudança é impossível. Entregar a alforria para o próprio pensar é estar pronto para o debate e para revolta. Afinal, a ressaca do mar não acontece na piscina, ainda que as águas sejam as mesmas.

1. vide link: http://escapismogenuino.wordpress.com/2012/01/16/liberdade-por-zenos-frudakis/

terça-feira, 24 de julho de 2012

Você em mim

Talvez sejam os olhos
expressivamente contundentes
que penetram os da gente
nos despindo dos imbróglios

Talvez seja o sorriso
inundado dessa luz
inocente que seduz
o displicente que se nega ao aviso

Ou será o charme natural?
Da vaidade que completa a beleza
à beirar alguma forma de riqueza
do culminar de todo gesto em sensual

É tudo e simplesmente  isso
você na completude do meu ser
na plenitude do que possa parecer
a minha entrega às nuances do seu feitiço.

Norhan

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Mulher e marcas

Aquela mão do afago
agora agride minh'alma
Os dentes não são mais protagonistas
do sorriso e da calma
agora rangem no calor de cada trago

O encontro é abrupto
os sons parecem breves
meus olhos fecham por reflexo
e as marcas que na minha face escrevem
a dor como um ator corrupto

O choro toma a cena
com o medo de enfrentar o medo
E o segredo tórrido a ser apagado
assim como as marcas dos seus dedos
que o meu corpo envenena

Me sinto alijada aos poucos
dos sorrisos de amar a vida
de emoções que me são privadas
cada vez que sou agredida
eu dou mais razão aos loucos.

Norhan Sumar

terça-feira, 3 de julho de 2012

A água e a pedra

Quisera que o desejo iminente
não fosse inerente aos passos meus.
E a linha reta do compasso
não se curvasse ao embaraço
de fazer do seu abraço
alguma forma de apogeu.

Pudera desse ensejo ardente
fazer paixão presente em peito seu.
E todo medo do meu caso
com o acaso intercedente do fracasso
me permitisse te vencer pelo cansaço
E fazer que teu apreço seja todo meu.

Se o caminho estava aberto
à minha correnteza,
e mesmo com a incerteza
foi melhor ficar por perto

O ditado estava certo,
chamando a pedra, fortaleza
mas minha água, gentileza
fez teu seio descoberto.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Epidemia


“Como pode alguém usar crack, Nelson?” perguntava Daniele, nutricionista de um centro de saúde em Cachoeira, uma cidade pequena no interior.
“Não sei, Dani. Como médico não consigo explicar o que leva uma pessoa a embarcar nessa, mesmo com tanta informação, com a mídia, com os profissionais dizendo como as pessoas precisam viver para serem saudáveis.” Respondeu o médico enquanto conversavam no pátio externo da unidade e Nelson aproveitava para acender mais um cigarro.
Os trabalhos estavam calmos naquele dia, como era o habitual na pequena cidade de Cachoeira. Mas como se costuma dizer, os bandidos saem da Capital em busca de refúgios nas pudicas e pacatas cidades de interior para fugir da repressão policial ou coisa que o valha. As cidades pequenas, construídas nos entornos das paróquias, se livram de seus pecados todo domingo de manhã, durante as missas rezadas pelos padres estrangeiros que santificam qualquer pecador após meia dúzia de Aves Marias. E Cachoeira começava a padecer desse “mal.”
“Dani”. Recomeçou o médico. “Será que o sedativo do viciado da sala de repouso ainda está fazendo efeito?” tragou mais uma vez seu cigarro de filtros amarelos que lhe custavam dedos manchados pelo hábito longínquo. “Daqui a pouco ele começa a dar escândalo novamente.” Terminou, acendendo o cigarro da amiga com a brasa de seu próprio.
Eles estavam apenas aguardando a chegada da ambulância para transferência do Aldo. Mais um dependente químico que precisou utilizar o sistema e o sistema não o desamparou. Seus profissionais preparados, formados para serem críticos, reflexivos, humanizados, cientes das diferenças sociais impregnadas no país, cuja abordagem dialógica dá voz ao usuário no processo saúde-doença, trataram de atender a demanda daquele homem que precisava apenas de uma internação a fim de “limpar” seu organismo do tóxico e recondicionar seus hábitos. Simples como tudo parece ser.
A epidemia não fez e não faz distinção, chegou até a pequena Cachoeira. As internações eram encaminhadas para cidade vizinha, um pouco maior, com um hospital de pequeno porte e seus trinta leitos. Mas os investimentos eram tão escassos –  por vezes em estratégia de compulsoriedade nas internações - como em qualquer capital. A realidade de Cachoeira parecia caótica, com usuários de drogas ilícitas pelas ruas sendo criminalizados pelo consumo, transgressores das normas e leis que conduzem o Estado. Tinham ainda alguns dos moradores de rua antigos por ali, incluídos no grupo de “viciados”, pertencendo a ele ou não. E a epidemia era iminente. A epidemia que sofrem as capitais. A doença da desumanização dos tratamentos, das prescrições comportamentais estáticas, do desrespeito ao próximo, da indiferença diante das injustiças e contradições da sociedade. Ah, e o crack? Mas o crack não é a epidemia. A nossa doença é outra!

Norhan

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Primeira viagem


Todo aquele cenário parecia ter sido montado para o momento. A forma que ele tinha de me tocar expressava o que vinha adiante. Nossos olhares se cruzavam em cada toque e ali ficava explícita a minha insegurança. E ele, ah... Ele era muito habilidoso em transmitir todo o seu conhecimento sobre o meu corpo – provavelmente não só o meu. A luz sobre nós iluminava o ambiente de uma forma cuidadosa, capaz de não deixar escapar o mínimo detalhe – confesso que me fez sentir ressabiada e tímida em alguns momentos. “Aquela era a hora”, insistia ele, afinal, já estávamos juntos há alguns meses. Todos aqueles encontros, aqueles contatos e descobertas. Sorrimos juntos, choramos juntos, embora ele sempre comedido, ocultasse as lágrimas atrás de um sorriso admirável de quem compreendia o meu momento. Tudo era favorável, eu queria que fosse a hora, e queria que fosse ele, mas compreendam o meu medo, era a minha primeira vez. Não é tão simples enfrentar a primeira vez com segurança de que tudo será indolor e harmônico. Ao menos não foi assim que Telma me contou a sua própria experiência. Ela disse que nunca mais pisou naquele lugar. E mais, nunca teve interesse de ligar praquele crápula. Já no meu caso, tudo parecia perfeito, a pessoa certa, o momento certo, o ambiente favorável, só faltava uma música. “Mas para que?” perguntava ele. Então começamos – despida, deitada a sua espera, exposta às suas próprias vontades, vulnerável e frágil, estava eu, com os mamilos protuberantes, suplicando por algo a protegê-los do gelo que se fez ali, sentindo a minha genitália pulsante, inchada, cada vez mais úmida. Ele começou conversando comigo, sorrindo um pouco e me deixando tranqüila, tocando meu ventre em leves carícias, fazendo movimentos coordenados, simétricos e confesso que relativamente prazerosos; e, contrariando a calma anterior, sem muita cerimônia juntou o indicador e o dedo médio e num único movimento, sincronizado e pericial, introduziu os dois dedos na minha vagina sem olhar nos meus olhos – ainda não havia dor, somente dúvida. Ele conduziu tudo tecnicamente, Paulo era o nome dele inclusive, alheio a qualquer movimentação que não fosse a minha, a nossa, ele continuou. Conversava comigo enquanto eu gemia, me contorcia de dor, e continuou até ouvir o aquele grunhido de prazer e desprazer, a sinonímia mais perfeita que o choro pode ter, o primeiro conflito entre felicidade e tristeza - nasceu. Fora um parto natural, sem complicações graças às habilidades de Paulo – Dr. Paulo se preferirem. Decidimos tudo no último encontro em seu consultório. Ele, ainda muito habilidoso prosseguiu rompendo os laços físicos entre mim e a minha nova razão de vida, aguardou a expulsão da placenta e finalmente a entregou para uma Técnica em Enfermagem que trouxe até meu colo a expressão mais profunda do meu prazer, minha cria, minha filha. 
Norhan Sumar

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Arte: Antoni Bemi                                           
Eu prefiro a paz
Mas ser pacífico demais
e entregar nas mãos de tais
os meus direitos mais vitais
de viver, correr atrás
Não dá mais!
Cadê o povo tão voraz,
nas capas dos jornais,
a lutar por ideais
e direitos sociais?
Ao pensar no que se faz
em condutas imorais
nos palácios federais
que faz do povo animais
No interior de mim,
não há paz...

quinta-feira, 8 de março de 2012

Retrato


Ao som de Cazuza, “Trem das Estrelas”, que deixava o dispositivo móvel e se disseminava na mente deles através do fone de ouvido, entrou o casal em mais um ônibus lotado da cidade. Na realidade, “transporte público naquele país era famoso por ser desagradável”, pensava ele ao ter que ficar de pé para que ela sentasse ao lado de um sujeito mal encarado com um rosto redondo, uma cabeça parcialmente calva e um resquício de barba assimétrica no rosto, em um banco que ficava na metade exata do ônibus. No banco de trás, uma mulher de meia idade, talvez com uns 35 mas aparentando 45 anos ladeava uma criança de aparentes 5 anos que provavelmente nem pagara sua passagem devido a lei que a amparava e ali estava a ocupar um assento. “Que merda de lei! Ela está mais nova, tem mais vitalidade.” Bravejava apenas para a própria mente. Via-se uma idosa em pé e muitos dormindo, ou fingindo estar para permanecerem sentados até o alívio de ver alguém dar lugar a ela. Eram cadeiras reclináveis e acolchoadas, com um arzinho gelado resfriando o pescoço dele, que observava sua menina dormir ao lado daquele calvo com “cara de sujo”. “Ah, mas se esse monte de merda encosta nela.” Pensava no que lhe parecia um impulso de coragem que não era comum. Retirou momentaneamente o fone do próprio ouvido e percebeu que o ambiente continha uma trilha sonora específica, oferecida por um passageiro que parecia não se preocupar com fato de não compartilharem do mesmo gosto musical que o seu.  Foi quando se ouviu um estampido seco e breve, seguido de muitos gritos desesperados. Muita gente levantando, correndo, pessoas se jogando no chão sem deixar que curiosidade os fizesse procurar a origem dos tiros. Ele nunca havia escutado um tiro de fato. E outro estampido. Ele ficou em pânico. A sua menina estava longe dele. Fora arrastado para a frente do ônibus por duas mulheres exacerbadamente em pânico. Viu que no final do ônibus havia dois corpos no chão, um sobre o outro, sem vida, com algo que parecia sangue a manchar as roupas e o chão, um homem empunhando uma pistola cromada que ofuscava o olhar daquele reles estudante de geologia. Sem considerar sua inabilidade e fraqueza correu em direção ao homem. Só lhe passava pela cabeça salvar sua menina. O homem segurava a arma como quem soubesse o que fazia. Olhou para a carcaça franzina do rapaz que vinha em seu encontro e não hesitou. Mais um disparo foi dado. Ouviu-se um estampido seco e breve novamente, seguido de um grito desesperado, mais alto e lamurioso do que os outros. A menina saltou em cima do seu herói, mas não havia sangue nem sinal de tiro. “ele estava vivo.” Ela não pôde acreditar, o pranto continuou, mas agora com alguns grunhidos de alívio. O homem atirou contra si mesmo, mirou no lobo temporal e disparou. Matou o casal sentado no último banco e acertou a própria têmpora. Levou com ele as possibilidades de explicação do feito, do ocorrido. Levou com ele os motivos junto com as vidas, de forma egoísta, como quem no conforto de um assento ignora um ancião de pernas cansadas e aparência abatida que permanece de pé. Não disse palavras, disse gestos, que talvez não na mesma proporção, mas ainda sim egoístas como vários outros.
Norhan Sumar

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Ler ou não ler

Caro pensador visitante, devo desculpas pelo abandono dos últimos meses. Mas outras vertentes da minha vida precisaram de dedicação enorme.
Prometer não é o caminho, mas aos poucos loucos que ainda passam por aqui em busca de alguma atualização, afirmo que a tentativa será de manter, a partir de hoje, duas atualizações por semana - uma terça e outra sábado. Talvez um texto livre terça e um conto sábado.
Pra começar bem, vamos ao texto desta terça... Que pensemos sempre por aqui!

Ler ou não ler

Uma infância rodeada de peripécias, molecagens, álbuns de figurinhas e desenhos animados. Nenhum livro me encantou antes dos dezesseis. Eu não sou filho de professores que têm respeito no meio acadêmico, escritores de lindos artigos e livros que fariam brilhar os olhos de um leitor. Normal como boa parte das pessoas, ou não. Tinha audácia e opinião suficientes para dizer que ler é um saco, uma perda de tempo. Um tempo precioso que poderia estar sendo gasto com coisas mais interessantes como parar na frente da escola e ficar olhando outras pessoas passarem.
Mas então vem o primeiro livro. E por um motivo desconhecido, a gente lê em tempo recorde. Outros o acompanham, preenchendo a sua leitura cotidiana com algo além de revistas de fofoca e capa de jornal na parte lateral de alguma banca. Quando percebemos, não nos preparamos para sair de casa sem o bendito na mochila. Depois, saímos de casa para lugares tranqüilos só para darmos atenção a eles, aos livros.
Considerando as preferências e afinidades de cada um – tem os que gostem dos Best-Sellers, os que prefiram as ficções adolescentes, os policiais, suspense, drama, religiosos, auto-ajuda, e por aí vai. Mas ler parece ser tão contagiante, que basta darmos o primeiro passo em direção ao livro que nos agrada para não pararmos de virar página atrás de página, ansiosos pela próxima parte em que riremos sozinhos sob olhares desconfiados dos que nos circundam.
Ler é abrir caminho para sua imaginação, sempre permitindo que crie à sua maneira algum detalhe que até o escritor mais criterioso sempre esquece. Ler me livra do sedentarismo mental, me isenta da ignorância estática de assistir televisão todo dia e toda hora. Ler exercita meus pensamentos, aflora a vontade de exteriorizá-los, me tira da prisão do mundo e me lança sobre a liberdade da criatividade.
Se é questão de gosto, ler ou não ler, alguém soube temperar meu prato depois de alguns anos de aversão ao hábito. Se é questão de paciência, confesso que não sou o mais sereno dos homens, mas tolero mais facilmente momentos de páginas numeradas e repletas e pensamentos e arte do que a hostilidade e o egoísmo do lado de fora da janela.

Norhan Sumar