segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A troca

             Eu acordava antes dele para ir ao trabalho. Sempre o deixava dormindo, pois ele chegava tarde da noite de sua jornada de labuta de um assalariado do terceiro turno. Levantava de vagar e cobria a parte de seu corpo que estivesse exposta ao vento; preparava com carinho um café do jeito que ele mais gostava: forte, com pouco açúcar; arrumava-me com passos macios para não incomodá-lo ou despertá-lo. Assim eram todas as manhãs das nossas inúmeras semanas.

              Eu sempre fui boêmia, mas delicada. Sempre tive muitas amigas e vontade insaciável de viver tudo que me fosse possível. Até ele aparecer:

              Estava sentada, rodeada de amigas de faculdade, em uma das ruas mais bonitas de Curitiba, com seus diversos bares e tribos. Conversávamos sobre as aventuras da noite anterior, na qual cada uma de nós fora parar em um lugar diferente, com pessoas diferentes. Era uma conversa de muitos risos e goles. Entre uma história e outra, percebia aquele olhar claro a fitar meus movimentos; ele não parava de me olhar um minuto sequer. Ele tinha apenas um amigo consigo, mas não falavam muita coisa. Aqueles traços misteriosos, de cabelos loiros e olhos verdes, a barba mal feita, o tronco e os braços naturalmente imponentes, uma altura que me deixava trêmula cada vez que se levantava para ir ao banheiro masculino - que ficava bem perto de nossa mesa. Naquele sol, imaginei que fosse curitibano pelas roupas longas e bem comportadas. Ele tinha uma coragem no olhar, pois sempre me encarava até que eu fosse a primeira a desistir do embate entre os olhos - apesar de abusada, eu sempre desistia sem graça ou envergonhada. Ele sorria.

               Hoje, ele continua lindo, corajoso, misterioso e de poucas palavras. Quem mudou fui eu. Agora sou sua mulher, também de poucas palavras, mas muito pouco corajosa e com somente uma amiga de fato - que por sinal é sua irmã. Ganhei o amor que tanto ansiei, mas perdi a vida que tanto gostava. Que engraçado é o amor: tira para dar. Quase como uma troca. Eu não sou feliz, mas amo como se fosse.

               O trabalho de corretagem de imóveis nunca foi problema para mim, repleta de argumentos e muito pouca timidez. Mas o amor traz mudanças, sempre traz. Agora eu não trabalho para saciar as minhas demandas de ser feliz, mas sou feliz somente porque trabalho. De lá vem meus sorrisos, minhas histórias, meus romances, meus medos, meus planos, meus erros, minhas paixões... Enfim.

                Eu não amava e era feliz. Fui enganada pelo amor - agora amo muito (não se enganem, amo muito mesmo) e não consigo mais uma relação sadia com a felicidade. Meus clientes, em grande parte, me saciam além do profissional. Descobri que o amor e o sexo estão separados - são amigos - mas andam por si só. Em casa eu tenho apenas amor, o que vocês esperavam que eu fizesse? Quem é errado nessa história eu não sei. Mas no meu caso, o amor não cuida de tudo, não prevê tudo, tampouco se preocupa em ocupar todos os espaços. Eu fui inocente ao achar que eu amor era capaz de preencher todas as lacunas. Na verdade ele cria diversas novas lacunas, que serão preenchidas de um jeito ou de outro. E eu amo, mas trato de preencher as minhas.

Norhan Sumar

4 comentários:

Anônimo disse...

Sumar Sumar...sempre provocante...sempre...

shenara disse...

Oi, Norhan!! Essa crônica está ótima, daria até pra ser um roteiro de teatro, consegui até imaginar essa mulher. Enquanto uma delas, eu vejo que a mulher tem que ter o cuidado pra não se anular frente a esse amor, a vida de ninguém deve estar baseada só em um pilar: a família, os amigos, o trabalho, os hobbies. Quando a gente se dedica só ao amor, parece que abrem várias lacunas justamente por essa tendência humana de se jogar de corpo e alma em uma única coisa!

Beijos e parabéns!!!

Anônimo disse...

Assim me ilude do mundo

#21

Anônimo disse...

Pois é a vida imita arte...
Hoje posso falar disso sem chorar...
mas passei por tudo isso...
mas foi bom cresci...
e hoje eu estou vivendooooo!!
sinto literalmente o meu sangue correr vivo elas veias...
Beijos...
Vivendoooooo....

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